Tema debatido na série Integração de tecnologias, linguagens e representações, apresentado no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 2 a 6 de maio de 2005 (Programa 5)
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO EM AMBIENTES VIRTUAIS
Rogério da Costa
Aprendizagem
Sempre me pareceram estranhas as tentativas de se produzir cursos na Internet, fazendo-se uso da mesma arquitetura conceitual e formal dos cursos presenciais. A necessidade de se cumprir etapas e a seqüencialidade implícita, em alguns casos, me pareciam contraditórias com a arquitetura da rede, onde o movimento elementar é o do link, da navegação explo-ratória. Além disso, a corrida rumo à capacitação dos professores para o virtual, a fim de que eles próprios pudessem ter condições de construir seus cursos on line, sempre me pareceu uma tarefa extremamente árdua. Isso porque vejo a atividade básica de um professor em-quadrada no modo de produção artesanal, onde cada aula é executada “manualmente”, em que a preparação de tarefas, mesmo antecipada, sofre com as intervenções presenciais dos alunos.
Penso que, como sugestão, poderíamos distinguir três dimensões mais características entre os modelos possíveis de ensino: uma dimensão artesanal, em que o professor confecciona seus próprios cursos; uma dimensão industrial, na qual existe a necessidade de serialização do ensino, para garantir uma espécie de resultado padrão na aprendizagem; e, finalmente, uma dimensão computacional, que é a que começa a se desenhar hoje, onde nos confrontamos com uma espécie de modulação variável e contínua na assimilação de informações.
Essas dimensões, muito provavelmente, irão conviver durante longo tempo, e o que me parece interessante é pensar como cada uma pode interferir positivamente sobre as outras. O trei-namento empresarial, por exemplo, sempre esteve voltado para o aprimoramento de compe-tências, para o aperfeiçoamento de conhecimentos com fins específicos. Para o sistema Edu-cacional, contudo, a vocação sempre foi a de educar e formar cidadãos, no sentido amplo, estruturando o psiquismo humano desde a sua mais tenra idade, auxiliando na construção do sentido de sociedade e grupo, e isso em concomitância com a construção dos conhecimentos. A influência de uma dimensão sobre outra, neste caso, já é bem visível no que diz respeito ao treinamento em empresas, que acabou por influenciar o ensino escolar no sentido de torná-lo mais voltado para o mercado de trabalho, introduzindo-se nas escolas os famosos “labo-ratórios”. Por outro lado, o surgimento das chamadas “Universidades Corporativas” aponta para uma compreensão, por parte das empresas, da necessidade de se contar com indivíduos em seus quadros que possuam uma formação mais ampla do que as competências requeridas por suas funções. Além disso, elas passaram a compreender que elas próprias, as empresas, também fazem parte de uma comunidade, que pode muito bem ser beneficiada com iniciativas desse gênero.
Mas e o ciberespaço? Acredito ser interessante desenvolver uma concepção em primeiro lugar industrial da produção de cursos virtuais. Estes poderiam ser vistos (e já o são) como produtos moduláveis, resultado de um processo de produção serial, que visa alcançar escalabilidade. Sendo assim, não faria sentido treinar professores para construírem seu próprio curso, mas sim para utilizarem cursos disponíveis junto com seus alunos. Como na indústria, equipes especializadas formatariam os cursos, com o auxílio de um comitê científico ou algo do gênero.
Por outro lado, deve-se levar em conta as próprias características do ciberespaço, que pode nos ajudar a redefinir os processos de aprendizagem de um modo mais amplo. Talvez, o que mais prejudique o aprendizado seja a própria idéia que temos de aprendizagem. Se acre-ditarmos que alguém possa aprender de modo diverso ao que é proposto pelo sistema pro-fessor-aluno, que é possível aprender quando trocamos idéias com outras pessoas, que ao relacionarmos informações dispersas estamos, de algum modo, produzindo conhecimento, então a Internet beneficia o aprendizado. Por outro lado, não há nada que prejudique mais o aprendizado tradicional que um professor despreparado ou mal amparado materialmente.
Cabe lembrar que a navegação em rede significa, basicamente, a possibilidade de se explorar, de um modo não-linear, universos distintos de informação e conhecimento. Ora, a idéia de exploração, por si só, já nos convida a refletir sobre a aprendizagem de uma maneira distinta daquela que comumente entendemos: a recepção do conhecimento exclusivamente através do professor. Porém, a própria atividade de exploração dos mundos virtuais requer um apren-dizado! Isso nos leva a crer que o ensino tradicional, por sua vez, terá um papel importante a desempenhar nesse aspecto: ensinar o aluno a ser ele próprio o explorador de seu universo de interesses.
As comunidades virtuais e o aprendizado coletivo que elas implicam constituem outro aspecto fundamental da navegação em rede. Aprender a aprender coletivamente talvez seja uma outra tarefa para o Ensino Fundamental. Penso, ainda, que não é produtivo estabelecermos uma concorrência entre o ensino através de ambientes virtuais e o ensino tradicional. Ao contrário, eles podem ser vistos como perfeitamente complementares. Cabe lembrar, no entanto, que o fato de estarmos sendo provocados a pensar o ensino via internet, com todo o desafio que isso significa e com toda a riqueza que ele nos promete, nos faz refletir sobre a própria arquitetura do ensino tradicional que temos hoje. Isso nos leva a crer que nossa relação com o ensino presencial se tornará cada vez mais complexa, mais crítica e, esperamos, mais rica em mudanças e inovações.
O processo de aprendizagem no ambiente virtual
Há alguns anos, analisava ferramentas de ensino a distância percorrendo sites na Web. Numa dessas visitas, encontrei uma equipe responsável por uma delas, que discutia os desafios de se ensinar em ambientes virtuais4. Eles lembravam, acertadamente, que na sala de aula os alunos estão sob a influência direta do professor ou instrutor. Há expectativas sociais sobre, por exemplo, o que o professor fará, se perguntará algo, como avaliará uma pergunta, o que os outros comentarão etc. O ambiente é social. Há pessoas de quem gosto, que me olham ou, ao contrário, de quem não gosto etc. Há também um comportamento de aprendizagem, pois posso levantar a mão para fazer uma pergunta, resolver uma dúvida em segundos, pergun-tando ao colega ao lado, há silêncio durante os exames etc. Na sala, sobretudo, o controle pertence ao professor. Isso significa que ele pode exigir dos alunos um determinado comportamento: “olhem para cá”, “prestem atenção neste ponto”, “comecem a prova agora” etc.
Em casa, diante de seu computador, não há expectativas sociais, pois o estudante está em seu próprio ambiente e o professor chega ao ambiente do estudante quando ele assim o deseja. Ele não está preocupado com o que o professor dirá ou não sobre seu comportamento. E o modo como ele se comporta com o computador só ao próprio estudante interessa. Neste caso, o controle pertence ao estudante.
A pergunta que seria feita nesse momento é: se não podemos fazer com que as pessoas façam o que queremos que elas façam, como podemos ensiná-las? Resposta: nós ensinamos de um modo que se alinhe com o que as pessoas já desejam fazer. E isso começa por compreender que cada um possui um estilo de aprendizagem distinto. Há pessoas que possuem uma capacidade enorme de lembrar do que viram; outras são excelentes em recordar o que ouviram. E há ainda as que são boas nas duas capacidades cognitivas. Mas também há os que precisam fazer ou exercitar uma atividade para sedimentar conteúdos na memória, ou os que precisam da repetição para pensar e refletir sobre um assunto e assim consolidar um conhecimento. O desafio de cursos virtuais seria o de fornecer informações às pessoas em seu próprio estilo de aprendizagem. É difícil para as pessoas mudarem esse estilo, seja em sala de aula, em conferências ou via computador. O importante, então, seria dar oportunidade para que cada estilo de aprendizagem encontrasse na ferramenta apoio e estímulo.
É preciso desenvolver instrumentos para quem aprende de forma seqüencial, global, colaborativa ou de modo autônomo. Quem aprende é um indivíduo, e apesar de termos meto-dos diferentes de ensino, cada indivíduo aprende da mesma maneira, estando em sala de aula ou na Web, pois o modo como ele fixa a informação em seu cérebro é basicamente o mesmo. O que muda é o controle das ações. O comportamento de quem aprende pode ser diferente, mas o processo através do qual o indivíduo assimila uma informação (visual, sonora, tátil) permanece o mesmo. O processo de aprendizagem na cabeça do aprendiz é o mesmo, na sala de aula ou na Web.
Grupos e participação
Acho interessante o fato de alguns estudiosos de EAD elogiarem os recursos interativos da rede, mas ao mesmo tempo manterem o conceito de ensino-aprendizagem preso à relação professor-aluno. Mas o que significaria exatamente, hoje, a transmissão de conhecimentos? Qual o real sentido que isso pode ter, atualmente, para nós? Que revolução acontece à nossa volta?
Quando iniciamos nosso trabalho sobre a inteligência coletiva, foi para chamar a atenção sobre a existência de verdadeiros ecossistemas de idéias, de mundos de significação onde cada um de nós está mergulhado. Falo em mundos de significação para tentar ir além da dicotomia professor-aluno, para buscar um conceito de imersão no conhecimento e não apenas no virtual. É nesta direção que surgem os desafios sobre a aprendizagem em grupo, sobre o papel das comunidades virtuais na construção coletiva dos conhecimentos. Mas há aqui muito ainda a se aprender. Percebe-se um certo desconhecimento sobre a formação de grupos de colaboração on line. Trata-se a idéia de grupo como algo que deva se estabelecer de forma “natural”, quando deveríamos de fato estar nos perguntando uma série de coisas. Por exemplo:
· O que são grupos, sejam eles presenciais ou virtuais? Como os grupos se formam?
· Que espécie de energia (cultural, tecnológica, social) é necessária para a formação de grupos?
· Qual a diferença entre grupo e agregado ou reunião aleatória de pessoas?
· Quanto tempo leva para que uma turma recém-organizada se torne um grupo? Quais são os elementos ou fatores, tanto presenciais quanto virtuais, que instigam e facilitam a formação de um grupo?
· Independentemente do fato de as pessoas se conhecerem, o que dispara uma atividade de grupo, ou seja, o que produz um “efeito” de grupo? O que faz uma pessoa agir na “supo-sição” de que está em grupo?
Lembremos, ainda, de que essas perguntas nos remetem a uma outra discussão: o que é participar? De fato, em atividades coletivas há alguns tipos de participação perfeitamente complementares. Há pessoas que gostam de participar apenas assistindo ou acompanhando uma discussão. Outras, quando provocadas, colocam perguntas ou participam em votações. E há aqueles que colaboram das mais diversas maneiras: enviando material, disponibilizando informações, estimulando os colegas etc. Deve-se ter em mente que sempre será muito difícil, senão impossível, exigir um mesmo nível de participação para os membros de um grupo, seja ele virtual ou presencial.
Avaliação dos conhecimentos
Quando discutimos a respeito do problema da avaliação, é importante retomar, como o faz Michel Authier, a interpretação econômica desse termo. A noção de avaliação pode ser entendida como o processo através do qual alguma coisa ganha valor. E valor é contexto. Nesse sentido, os exames, provas e testes praticados pelas instituições de ensino tradicionais são apenas um primeiro momento, e não o mais importante, do processo de avaliação pelo qual as pessoas darão provas de seus conhecimentos ao longo de suas vidas.
Para além desse fato tão óbvio e, no entanto, ainda hoje ignorado pelos mecanismos de atribuição de valor praticados pelo setor educacional, haveria ainda uma outra questão, talvez mais filosófica do que metodológica. Trata-se de se perguntar se os conhecimentos não deveriam ser eles próprios avaliados? Por que razão parece tão evidente que todo e qualquer conhecimento deva ter, de uma maneira geral, valor? Na prática, mesmo considerando essa hipótese, sabemos que, de fato, os conhecimentos possuem valores diferentes e que muitos deles possuem até mesmo um valor mínimo!
Evidentemente, e ainda seguindo Authier, sempre poderemos dizer que todo conhecimento é uma riqueza. Contudo, ele pode ser, dependendo do caso, uma riqueza como o petróleo ou como o diamante, soterrados a muitos metros de profundidade. É preciso então extraí-los, e para isso é preciso realizar trabalho, alimentar uma produção que, ao final de um processo, permitirá que a riqueza, antes soterrada, possa ganhar valor. Mesmo assim, o petróleo bruto, por exemplo, precisará ser ainda refinado, o diamante precisará ser burilado.
Então, o processo de extração de valor é, nesse caso, ainda mais complexo.
De qualquer modo, esses são exemplos em que uma riqueza pode, ao final de um conjunto de operações, ter as condições necessárias para ganhar valor através da ação que uma comu-nidade venha a exercer sobre ela. Mas não antes disso ou independentemente disso. Outras riquezas, por exemplo, só têm valor para aqueles que as possuem, como as relíquias de família que guardamos, e que não cansamos de afirmar aos outros: trata-se de um objeto de valor, para mim.
A distinção entre riqueza e valor nos ajuda a ver também outra coisa. Quando as pessoas conseguem perceber o valor futuro que uma dada riqueza pode vir a ter, então elas têm uma percepção mais clara dos benefícios que o trabalho a ser empregado para adquiri-la, extraí-la ou produzi-la trará. É o valor que move os interesses, as ações e interações das pessoas, e não simplesmente a idéia de riqueza desnudada de contexto.
Retomando a discussão sobre os conhecimentos, torna-se cada vez mais difícil contornar o fato de que eles possuem valores distintos, que variam segundo o investimento que as comunidades fazem sobre eles nessa ou naquela situação. Estamos justamente vivendo um momento histórico, em que os conhecimentos brotam diariamente, de todos os cantos. Eles são produzidos hoje nos mais diferentes ambientes, incluindo instituições culturais e finan-ceiras, empresas, ONGs etc., além dos lugares tradicionais, como universidades e centros de pesquisa. Isso significa que, para se ter uma visão da dinâmica dos conhecimentos, não basta estar exclusivamente em algum desses lugares.
Ora, os indivíduos deveriam ter o direito de definir aquilo que querem aprender com base no valor dinâmico dos conhecimentos e não com base apenas na idéia, muito abstrata, de que simplesmente possuí-los significa ter uma riqueza. É preciso oferecer aos usuários o mapa dos valores dos conhecimentos, para que eles possam se orientar em seus percursos de apren-dizagem. É preciso dar às pessoas o contexto de aplicação dos conhecimentos, que nada mais é do que o conjunto de problemas (teóricos ou práticos) que eles podem enfrentar. Mas onde está esse mapa? Onde é possível consultar sobre o valor dinâmico dos conhecimentos? Como se orientar num percurso de aprendizagem contando apenas com informações vagas, midiáticas e parciais sobre a demanda da sociedade por conhecimentos?
Penso que alguém só poderia ser avaliado sobre sua aprendizagem se tivesse podido, anteriormente, ter escolhido seu percurso educacional através de uma orientação desse gênero.
Fonte: Salto para o Futuro
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