Tema debatido na série Integração de tecnologias, linguagens e representações, apresentado no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 2 a 6 de maio de 2005 (Programa 3)
EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E SEUS ENLACES
Cleci Maraschin
Que professor não sentiu calafrios ao imaginar softwares educacionais substituindo o trabalho pedagógico? Crianças cuidadas por robôs-babás? Jovens em diferentes simuladores, contro-lando aviões, naves espaciais, construindo e gerindo cidades? Ou, talvez, os calafrios já aconteçam na aquisição de um pequeno celular, cujo manual contenha um volume físico de informações maior que o próprio aparelho. Ou em um "simples" rádio-relógio despertador. Como programar a hora de acordar? Como conversar com essas novas máquinas? Com que linguagem?
Programar! Programar! Antes, uma ação profissional circunscrita a alguns técnicos conhe-cedores de linguagens de programação é hoje distribuída em uma série de produtos de uso cotidiano: programar os canais da TV, as emissoras de rádio, a máquina de lavar roupas, a cafeteira. E os calafrios não param por aí... Imaginem nossa surpresa quando crianças de 4-5 anos programam muito melhor que nós? Quando adolescentes gerenciam empresas virtuais? Como conversar com essas crianças e jovens? Essas vivências cotidianas desafiam os educadores e seu trabalho.
O desassossego com o crescente processo de informatização também pode indicar o quanto as tecnologias anteriores já foram naturalizadas, acopladas ao nosso viver, que parecem até ter perdido seu potencial desestabilizador de outrora.
A atualização dos modos de viver, causados pela presença de outras tecnologias, não significa necessariamente um esfacelamento da realidade ou um processo de desumanização. Pode significar a vivência do deslocamento das fronteiras daquilo que chamamos realidade ou hu-manidade. Os estudos sobre a percepção humana já trazem evidências de que aquilo que vivemos como realidade é resultante de um processo de construção, de criação de uma forma, a partir de uma rede de configuração heterogênea, que inclui a estrutura do sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, a história de acoplamentos, a linguagem, as tecnologias, as instituições sociais. Desta forma, possuímos tantos espaços perceptivos quantas são as classes de cor-relações sensório-motoras que podem ser realizadas, a partir da interação com as diversas configurações da rede na qual vivemos (Humberto Maturana e Francisco Varela, 2004).
Esse modo de operar explica porque, após um período de adaptação inicial, nos sintamos imersos em mundos virtuais capazes de instaurar um outro tipo de vivência e de congruências sensório-motoras extremamente ricas e decisivas, produzindo inusitados efeitos de realidade: nós habitamos um corpo neste mundo novo e fazemos realmente a experiência de traspassar muros, voar... Também explica a possibilidade de navegar em mundos coletivos diversos sem, necessariamente, substituir ou suplantar outros registros de realidade, mas ressignificando-os. Os espaços enriquecem-se reciprocamente. Após uma experiência de imersão em um mundo virtual, contemplamos o mundo “real” de uma forma que ainda não havíamos experimentado, redimensionando nossa sensibilidade. Mas também explica a criação de mundos confinados, restritos, submetidos. Não está em uma suposta "essência" a direção de nossos movimentos e de nossos mundos, mas na história mesma das reconfigurações recursivas.
A potencialidade de atualização dos espaços vividos faz com que todo esse processo não possa passar "invisível" à educação. Assim, é necessário produzirmos uma inversão episte-mológica do problema como é geralmente formulado: ao invés de problematizarmos a infância e a adolescência “plugada”, normatizando-a, deveríamos questionar a exclusão das tecnologias das práticas escolares. Ao invés de somente nos preocuparmos com regras, limites e normas (restrição de horários de acesso, restrição de sites, restrição de softwares), deveríamos ampliar ao máximo o desenvolvimento de estratégias de alfabetização tecno-lógica, o que inclui a invenção de metodologias de produção coletiva, de modos de avaliação, de maneiras de troca e de publicização dessas inovações.
Este texto é um convite para discutir a necessidade de uma outra alfabetização. Poderíamos denominá-la de alfabetização tecnológica ou digital. E, como em qualquer domínio de vida, essa alfabetização tecnológica ou digital pode comportar diferentes posições subjetivas: podemos ser "apropriados" pelos modos "digitais" de viver e sermos vistos/falados como "analfabetos digitais", ou podemos viver essa realidade segundo diferentes movimentos de cooptação e/ou de resistência e na direção da ampliação da experiência.
Manuel Castells (2002) nos fala que não estamos mais em uma época em que a rede de computadores, ou Internet, possa ser considerada somente uma ferramenta, que podemos decidir se vamos usá-la ou não. Ela já é uma infra-estrutura que possibilita uma grande, senão a maior gama de comunicações no planeta. A observação do autor faz pensar que ultra-passamos a idéia de uma apropriação técnica das linguagens, dos softwares, mas se trata de experimentar um outro domínio de viver, de conviver. Faz pensar também que as propostas pedagógicas limitadas a uma apropriação técnica, ou seja, de desenvolver "os funcionários das máquinas" (Arlindo Machado, 1996), estão longe de compreender o domínio e a extensão das transformações que estamos vivendo.
Uma alfabetização implica viver em um determinado domínio da experiência. Estamos chamando de domínios, ou ecologias cognitivas, a delimitação de territórios de vida confi-gurados por redes de poder-saber acopladas às diferentes tecnologias. Assim, como propõe Pierre Levy (1993), podemos dizer que nós vivemos nos deslocando em territórios confi-gurados por distintas ecologias cognitivas, que ele denomina de orais, escritas, digitais. Cada domínio especifica critérios de validação da experiência, distinguindo modos de acesso e formas de viver nesses territórios. A invenção de novos domínios certamente repercute sobre os demais, mas não elimina, necessariamente, antigos usos. Assistimos como as técnicas de digitalização da informação permitem a produção dos denominados “hiperdocumentos” onde, em um mesmo território, podemos acessar textos, imagens, sons, vídeos e ainda interagir, podendo interferir nos limites desse território. Como é o caso, por exemplo, de ferramentas ou softwares nos quais a interação pode deslocar as seqüências dos eventos, ou aqueles que permitem co-autoria, ou, ainda, os que possibilitam alterações nos conteúdos (modificando e adicionando informações), ou até mesmo aqueles que permitem efetuar transformações na própria programação (como é o caso do software livre onde os códigos-fonte são conhecidos e abertos).
No caso de domínios cognitivos, que estamos denominando de digitais, podemos assumir diferentes posições subjetivas, entre as já conhecidas:
a) Viver sem ter acesso a esse domínio. A manutenção da desigualdade na distribuição de renda, de bens materiais, culturais e de serviços presente na sociedade brasileira faz com que as possibilidades de acesso aos domínios do viver sejam diferenciadas. Isso por si só faz com que a temática da inclusão digital, ou de diferentes inclusões, seja, ao mesmo tempo, significativa e desafiadora (Maraschin, 2005). Mas, como exposto acima, os novos domínios repercutem sobre os anteriores, o que faz com que possamos passar a denominar pessoas como “analfabetas digitais” de acordo com seu distanciamento a esse território. Por isso, políticas de acesso são imprescindíveis e a escola, por seu caráter universal e público, se constitui um importante portal.
b) Viver sem consciência do quanto somos “programados” por esse domínio. A sustentação da idéia de uma inclusão digital, ou de uma alfabetização tecnológica, não dispensa discutir as práticas de inclusão e as relações de poder existentes entre os territórios do viver. Não é suficiente dizer que as escolas devam ofertar aos seus alunos o acesso aos recursos informáticos porque eles necessitam acompanhar a velocidade do desenvol-vimento tecnológico. Com esse argumento, vivemos como se a velocidade tecnológica fosse a matriz para pautar a velocidade na educação. Não é suficiente dizer que os alunos das instituições públicas necessitam ter acesso às tecnologias para que não seja incre-mentado o distanciamento competitivo com os alunos da rede privada, em direção ao mercado de trabalho. Essa proposição afirma uma subordinação do mundo educacional ao mundo do trabalho. E, mais preocupante que isso, leva a crer que a condição de empre-gabilidade está relacionada somente ao estatuto individual, à competência pessoal. Esquece que grande parcela das transformações estruturais dos modos atuais de trabalhar advém do próprio processo de tecnologização e de globalização da economia. Mesmo se houvesse uma universalização da capacitação tecnológica não haveria empregos para todos, pois a oferta de postos de trabalho não depende exclusivamente da capacitação individual. Se o acesso é fundamental, também necessitamos discutir o “para que” do mesmo.
c) Viver como usuários – em uma relação funcional “funcionários das máquinas”. Arlindo Machado (1996), ao discutir a criação artística e sua relação com a tecnologia, aponta a existência de uma certa pressa simplificadora quando se afirma que a evolução técnica reduz progressivamente o campo da criatividade estética e que a liberdade do artista encontra-se submetida ao arbítrio da máquina. Para o autor, a questão principal não é saber se o artista se encontra mais ou menos livre, menos ou mais criativo, trabalhando no coração das máquinas, mas se ele é capaz de recolocar as questões da liberdade e da criatividade no contexto de uma sociedade cada vez mais informatizada, cada vez mais imersa nas redes de telecomunicações e cada vez mais determinada pelas representações que faz de si mesma, através da indústria cultural.
Essa mesma problemática poderia ser recolocada no campo da educação. É preciso distinguir o trabalho criativo daquele que resulta somente de uma adaptação às máquinas. Certamente saber operar e programar máquinas é importante, mas a educação pode produzir experiências que ultrapassem ao “bom uso” ou “uso adequado”. As obras criativas, ao invés de “esgotar” determinadas possibilidades das ferramentas, redefinem a nossa própria maneira de entender e de lidar com elas. Ora, explorar as “possibilidades” de um domínio do qual as tecnologias digitais também fazem parte constitutiva pode ser uma difícil tarefa educativa, mas a criatividade não pode estar dissociada da resistência; na experiência educativa, deveria haver espaço para experimentar usos que possam mesmo subverter a função das tecnologias, manejando-as em direções divergentes de sua produtividade programada.
d) Viver produzindo exercícios de autoria, propondo outros usos. Quem poderia prever os efeitos da inventividade e da experimentação escolar, em larga escala, para o próprio desenvolvimento tecnológico? Professores e alunos não representam somente um mercado potencial de consumidores de softwares educativos. Eles devem ter condições de vir a ser parceiros de um desenvolvimento tecnológico responsável. E essa mudança na posição de poder é que produz o que estamos chamando de inclusão, produzindo co-autorias, modi-ficando os conteúdos desse território que implica ações de programação e de autoria coletiva. Além de explorar as potencialidades de os recursos poderem inventar outros usos.
e) Viver interferindo nas lógicas desse território. Aqui, o grande exemplo é o movimento do software livre. Movimento que alia resistência e criação. A articulação de princípios éticos com uma prática de construção e autoria coletiva. Além de seus produtos, o que pode também resultar interessante para a análise educativa são os modos construção das tecno-logias e ferramentas que os participantes trabalham. Seu modo de operar questiona práticas centralizadas, fechadas, de certificação de conhecimentos, que muitas vezes são tidas como as únicas formas legítimas de viver no domínio educativo.
Cabe aclarar que essa diferenciação não se configura como uma classificação em que as posições sejam disjuntas, nem em etapas necessárias à alfabetização tecnológica. É muito importante, por exemplo, que saibamos programar e tirar o máximo possível de uma tec-nologia. O que estamos tentando dizer é que pensamos ser limitante que a experiência educativa fique resumida a esse modo de viver no domínio tecnológico. Tampouco estamos propondo que todos os alunos dominem de tal forma a tecnologia que possam interferir nas lógicas desse território, mas sim que possam reconhecer movimentos e práticas inovadoras.
A potência de um novo domínio pode repercutir de modo diferenciado nos demais. E essa é certamente uma questão presente no domínio tecnológico. Cabe então o alerta de Roger Chartier (2002), quando adverte que a idéia de uma língua universal, ou diríamos, a idéia de que um único domínio possa ser suficiente para abarcar a experiência do viver pode ser perigosa. Isso repercute de modo ecológico, ou seja, na extinção de domínios de vida. Assim como podemos reduzir a diversidade das espécies no planeta, podemos reduzir os territórios de pensamento, as práticas, as idéias. Um epistemicídio que se baseia em utopias de um mundo sem diferenças, sem desigualdades, sem passado, como se a diferença fosse somente valorativa e implicasse necessariamente uma limitação de direitos.
Ao concordarmos com a proposição segundo a qual podemos experimentar tantas posições subjetivas diante de distintos domínios cognitivos quantas forem as possibilidades de acoplamentos possíveis a esses domínios, estamos dizendo que nenhum domínio está aça-bado, esgotado. Pode ser sempre recriado a partir da inventividade e da conectividade entre seus habitantes (humanos ou não) e entre outros domínios.
Por essas razões, cabe aos professores uma função importantíssima no território de vida que é a educação. Cabe indagar: como esses outros territórios deslocam, potencializam, modificam os modos de viver a escola, a aprendizagem, o conhecimento? Cabe-nos experimentar e analisar o que pode o território digital quando encontra o território educacional. Como pode-mos enriquecer a experiência do aprender? E discutir, como nos propõem Humberto Maturana e Ximena Dávila Yáñez (2004), se desejamos essas possibilidades, regulando fascínio e desassossego com ética.
Bibliografia
- CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
- CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
- LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
- MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: O desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 1996.
- MARASCHIN, Cleci. Redes de conversação como operadores de mudanças estruturais na convivência. In: PELLANDA, Nize Maria Campos, SCHLÜNZEN, Elisa Tomo e SCHLÜNZEN, Moriya Klaus Junior (orgs.) Inclusão digital: tecendo redes afetivas/cognitivas. Rio de Janeiro: D. P &A Editora, 2005.
- MATURANA, Humberto Romesín e Paz Dávila, Ximena Yáñez. Ética e desenvolvimento sustentável – caminhos para a construção de uma nova sociedade. Psicologia & Sociedade, 16 (3), 2004.
- MATURANA ROMECIN, Humberto e VARELA GARCIA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 4. ed. São Paulo: Palas Athena, 2004.
Fonte: Salto para o Futuro
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