Para o sociólogo suíço, o professor precisa de capacitação para se tornar um tradutor do conhecimento e conseguir modificar sempre sua maneira de explicar até que todos os alunos aprendam.
Lucita Briza
As mudanças de rumo que ocorreram na educação brasileira na última década não foram fruto do acaso. Elas buscaram responder a um desafio: desenvolver no aluno uma série de competências e prepará-lo para entender e transformar o mundo em que vive. As competências são objeto de estudo do suíço Philippe Perrenoud, cujas idéias sobre prática pedagógica influenciaram as reformas educacionais no Brasil.
Em sua última visita ao país, em julho, para participar de um seminário sobre educação e competitividade econômica realizado em Brasília, Perrenoud questionou a validade do próprio tema do encontro, que considerou "excessivamente ambíguo". Apesar disso, reconheceu ser "inevitável" levar em conta a competitividade de um país em tempos de economia global ao investir na educação. No sistema educacional, ele distingue duas instâncias de competição igualmente prejudiciais. A primeira é a que ocorre dentro de uma escola ou de uma sala de aula. A segunda é a que acontece entre as escolas e que pode levá-las a recusar os chamados "estudantes de risco", em lugar de dar oportunidade a todos. "Em educação, não deve haver perdedores", ele justifica.
Com a mesma ênfase que coloca na importância da universalização do ensino, o especialista fala das novas ambições e perspectivas educacionais.
Por que o desempenho do Brasil e dos países da América Latina em geral no ranking internacional de educação ainda é tão ruim?
Em uma pesquisa recente a esse respeito, vi que o Brasil ocupava a 37ª posição. Mas mesmo a Suíça, que é um país rico e desenvolvido, ficava na 17ª. Então, não há motivo para desespero. Existem grandes desigualdades mesmo entre nações muito ricas. Talvez haja tanta distância entre a Finlândia e a Suíça, que são dois países europeus pequenos e ricos, quanto entre a Suíça e o Brasil. Não é apenas uma questão de desenvolvimento, mas um conjunto de fatores complexos. O Brasil enfrenta problemas diversos e, portanto, não me surpreende que a educação brasileira não seja, hoje, ideal. É um desafio extraordinário mobilizar tantos recursos e pessoas. Nenhum governo pode fazer milagres.
A que o senhor atribui o sucesso de suas idéias aqui no Brasil?
Sei do que estou falando, tento ser concreto e busco não me afastar da realidade prática. Além disso, talvez os problemas enfrentados pela escola sejam muito semelhantes em todos os países, apesar das desigualdades de desenvolvimento e da diferente posição geográfica. Em lugar nenhum a educação é eficaz o bastante. O fracasso escolar e a exclusão são problemas universais, assim como a necessidade de levar em conta as diferenças individuais e de uma pedagogia mais construtiva. Por isso, acho natural que possamos nos reconhecer em trabalhos que vêm de outros continentes.
Os problemas na educação são conseqüência da crise do mundo atual ou são crônicos?
Eles mostram uma redefinição das ambições das políticas educacionais. No século 19, a idéia de educação como um direito de todos era revolucionária. Até hoje, no entanto, alguns países conseguiram escolarizar apenas 10% ou 20% de sua população. Já nas nações desenvolvidas, atualmente quase todo mundo vai à escola. Mas, onde todos já sabem ler, escrever e contar, isso já não basta. À medida que o objetivo da escolarização é atingido, ele se desloca. É normal que o sistema esteja sempre em discordância com relação às ambições que se estabelecem na modernidade, na complexidade, na tecnologia.
O peso de novas metas pode desestruturar o sistema educacional?
Não inventamos novas ambições para provocar o fracasso do sistema. Deve-se reconhecer que o nível mundial de educação jamais esteve tão elevado e as pessoas instruídas jamais foram tão numerosas. Mas, diante das necessidades de uma sociedade cada vez mais complexa, existe um déficit não absoluto, mas relativo às exigências dos tempos modernos. É fundamental compreender isso. A culpa não pode ser atribuída só à escola, mas à sociedade tecnológica, que é multicultural, globalizada e apresenta aos indivíduos desafios enormes. Viver hoje em dia é muito mais complexo do que há 50 anos: exige novos conhecimentos, novas competências.
Há quem diga que muitas pessoas trabalham bem com a cabeça, muitas trabalham bem com as mãos, mas poucas sabem trabalhar com as duas ao mesmo tempo. O que o senhor pensa sobre isso?
Essa idéia é um estereótipo. Todos nós trabalhamos com a cabeça. É impossível fazer qualquer coisa sem ela. E mesmo em trabalhos intelectuais há muitos aspectos práticos, como escrever, classificar, gerir o tempo. Não existe oposição entre atividade intelectual e manual. Pelo contrário: é necessário reconhecer que em toda tarefa existe uma parte de inteligência, sabedoria, antecipação e raciocínio. Mesmo um lixeiro ou um porteiro, que parecem fazer algo muito simples, estão sempre tomando decisões, avaliando prós e contras.
O Ensino Fundamental deve preparar para a prática?
Mas que prática? A Educação Básica realmente não prepara para o exercício de uma profissão, mas para a prática da cidadania, da vida social, associativa, sexual, amorosa e familiar. Todas essas vidas são muito importantes, e é possível associar a educação fundamental a elas.
O que o senhor pensa dos ciclos de aprendizagem, que no Brasil são vistos como uma solução de urgência contra a repetência?
Os ciclos de aprendizagem não são uma meta, mas um meio. Não são uma indicação de modernidade ou uma estrutura complicada por puro prazer; são um instrumenmto de trabalho. Devem ser o reflexo de uma pedagogia diferente.
Um dos desafios da educação atual é transpor a linguagem científica e tecnológica para a linguagem da escola. Como se capacitar melhor para isso?
Esse problema não é novo, mas está ganhando importância à medida que a cultura científica se expande. Toda disciplina escolar exige um trabalho de transposição, ou seja, deve tornar-se acessível a um público que não é composto de pesquisadores ou produtores do saber. Dessa forma, toda escola se torna uma imensa empresa de vulgarização, no bom sentido do termo. A formação de professores exige não só que eles dominem o saber mas também que saibam fazer a transposição desse saber. Como explicar frações a alunos de 12 anos? E números negativos a adolescentes de 13? São conceitos muito complexos, que, se forem explicados por alguém que não tem a competência da transposição, ou didática, só serão compreendidos pelos melhores estudantes. Os outros passarão por burros ou preguiçosos. Na verdade, a incapacidade é do educador. Traduzir é a responsabilidade principal do professor. Não basta saber, senão todos nós poderíamos lecionar. É necessário ter a competência específica para ser um tradutor de conhecimento.
Como o professor pode se tornar um bom tradutor de conhecimento?
Essa competência deveria estar no centro da formação inicial, mas infelizmente isso nem sempre acontece. Muitas vezes, no Ensino Fundamental, basta conhecer a matéria para começar a lecionar. Nesse caso, é necessário rever a formação inicial dos docentes para dar mais ênfase às competências de transposição e de gerenciamento do saber. A habilidade se desenvolve ao longo da vida, à medida que surgem os obstáculos. Alguém que explica frações e percebe que talvez quatro de cada cinco alunos não entenderam absolutamente nada de sua aula deverá tentar na aula seguinte ser mais concreto, achar novos exemplos. Esse processo não deve acabar nunca, pois os estudantes se renovam e há sempre alguns para os quais é necessário encontrar uma linguagem nova. Idealmente, um professor que de início era compreendido por três crianças em uma classe de 30 passará a ser compreendido por seis, depois por nove e finalmente por todas.
Agir na Urgência e Decidir na Incerteza é o título de um de seus livros. Como o professor pode agir diante do imprevisível?
Quanto mais qualificado for um profissional, maior deverá ser sua capacidade de enfrentar o imprevisível. Isso se aprende, e não é apenas na carreira de professor que é preciso improvisar. Como preparar as pessoas para isso? É necessário trabalhar a dimensão afetiva: a angústia, o medo de improvisar ou a resistência em abandonar uma estratégia habitual que se revela ineficaz. É uma tarefa que exige lutar contra toda espécie de perfeccionismo e que demanda tempo. A experiência ensina o profissional a discernir uma série de fatores. Um professor experiente sabe o que acontece em sua classe, a tal ponto que seus alunos pensam que ele tem olhos nas costas! Ele escuta ruídos, percebe quando começa a agitação e quando a concentração diminui. Quanto maior sua capacidade perceptiva, maior sua habilidade em improvisar.
Em sua última visita ao país, em julho, para participar de um seminário sobre educação e competitividade econômica realizado em Brasília, Perrenoud questionou a validade do próprio tema do encontro, que considerou "excessivamente ambíguo". Apesar disso, reconheceu ser "inevitável" levar em conta a competitividade de um país em tempos de economia global ao investir na educação. No sistema educacional, ele distingue duas instâncias de competição igualmente prejudiciais. A primeira é a que ocorre dentro de uma escola ou de uma sala de aula. A segunda é a que acontece entre as escolas e que pode levá-las a recusar os chamados "estudantes de risco", em lugar de dar oportunidade a todos. "Em educação, não deve haver perdedores", ele justifica.
Com a mesma ênfase que coloca na importância da universalização do ensino, o especialista fala das novas ambições e perspectivas educacionais.
Por que o desempenho do Brasil e dos países da América Latina em geral no ranking internacional de educação ainda é tão ruim?
Em uma pesquisa recente a esse respeito, vi que o Brasil ocupava a 37ª posição. Mas mesmo a Suíça, que é um país rico e desenvolvido, ficava na 17ª. Então, não há motivo para desespero. Existem grandes desigualdades mesmo entre nações muito ricas. Talvez haja tanta distância entre a Finlândia e a Suíça, que são dois países europeus pequenos e ricos, quanto entre a Suíça e o Brasil. Não é apenas uma questão de desenvolvimento, mas um conjunto de fatores complexos. O Brasil enfrenta problemas diversos e, portanto, não me surpreende que a educação brasileira não seja, hoje, ideal. É um desafio extraordinário mobilizar tantos recursos e pessoas. Nenhum governo pode fazer milagres.
A que o senhor atribui o sucesso de suas idéias aqui no Brasil?
Sei do que estou falando, tento ser concreto e busco não me afastar da realidade prática. Além disso, talvez os problemas enfrentados pela escola sejam muito semelhantes em todos os países, apesar das desigualdades de desenvolvimento e da diferente posição geográfica. Em lugar nenhum a educação é eficaz o bastante. O fracasso escolar e a exclusão são problemas universais, assim como a necessidade de levar em conta as diferenças individuais e de uma pedagogia mais construtiva. Por isso, acho natural que possamos nos reconhecer em trabalhos que vêm de outros continentes.
Os problemas na educação são conseqüência da crise do mundo atual ou são crônicos?
Eles mostram uma redefinição das ambições das políticas educacionais. No século 19, a idéia de educação como um direito de todos era revolucionária. Até hoje, no entanto, alguns países conseguiram escolarizar apenas 10% ou 20% de sua população. Já nas nações desenvolvidas, atualmente quase todo mundo vai à escola. Mas, onde todos já sabem ler, escrever e contar, isso já não basta. À medida que o objetivo da escolarização é atingido, ele se desloca. É normal que o sistema esteja sempre em discordância com relação às ambições que se estabelecem na modernidade, na complexidade, na tecnologia.
O peso de novas metas pode desestruturar o sistema educacional?
Não inventamos novas ambições para provocar o fracasso do sistema. Deve-se reconhecer que o nível mundial de educação jamais esteve tão elevado e as pessoas instruídas jamais foram tão numerosas. Mas, diante das necessidades de uma sociedade cada vez mais complexa, existe um déficit não absoluto, mas relativo às exigências dos tempos modernos. É fundamental compreender isso. A culpa não pode ser atribuída só à escola, mas à sociedade tecnológica, que é multicultural, globalizada e apresenta aos indivíduos desafios enormes. Viver hoje em dia é muito mais complexo do que há 50 anos: exige novos conhecimentos, novas competências.
Há quem diga que muitas pessoas trabalham bem com a cabeça, muitas trabalham bem com as mãos, mas poucas sabem trabalhar com as duas ao mesmo tempo. O que o senhor pensa sobre isso?
Essa idéia é um estereótipo. Todos nós trabalhamos com a cabeça. É impossível fazer qualquer coisa sem ela. E mesmo em trabalhos intelectuais há muitos aspectos práticos, como escrever, classificar, gerir o tempo. Não existe oposição entre atividade intelectual e manual. Pelo contrário: é necessário reconhecer que em toda tarefa existe uma parte de inteligência, sabedoria, antecipação e raciocínio. Mesmo um lixeiro ou um porteiro, que parecem fazer algo muito simples, estão sempre tomando decisões, avaliando prós e contras.
O Ensino Fundamental deve preparar para a prática?
Mas que prática? A Educação Básica realmente não prepara para o exercício de uma profissão, mas para a prática da cidadania, da vida social, associativa, sexual, amorosa e familiar. Todas essas vidas são muito importantes, e é possível associar a educação fundamental a elas.
O que o senhor pensa dos ciclos de aprendizagem, que no Brasil são vistos como uma solução de urgência contra a repetência?
Os ciclos de aprendizagem não são uma meta, mas um meio. Não são uma indicação de modernidade ou uma estrutura complicada por puro prazer; são um instrumenmto de trabalho. Devem ser o reflexo de uma pedagogia diferente.
Um dos desafios da educação atual é transpor a linguagem científica e tecnológica para a linguagem da escola. Como se capacitar melhor para isso?
Esse problema não é novo, mas está ganhando importância à medida que a cultura científica se expande. Toda disciplina escolar exige um trabalho de transposição, ou seja, deve tornar-se acessível a um público que não é composto de pesquisadores ou produtores do saber. Dessa forma, toda escola se torna uma imensa empresa de vulgarização, no bom sentido do termo. A formação de professores exige não só que eles dominem o saber mas também que saibam fazer a transposição desse saber. Como explicar frações a alunos de 12 anos? E números negativos a adolescentes de 13? São conceitos muito complexos, que, se forem explicados por alguém que não tem a competência da transposição, ou didática, só serão compreendidos pelos melhores estudantes. Os outros passarão por burros ou preguiçosos. Na verdade, a incapacidade é do educador. Traduzir é a responsabilidade principal do professor. Não basta saber, senão todos nós poderíamos lecionar. É necessário ter a competência específica para ser um tradutor de conhecimento.
Como o professor pode se tornar um bom tradutor de conhecimento?
Essa competência deveria estar no centro da formação inicial, mas infelizmente isso nem sempre acontece. Muitas vezes, no Ensino Fundamental, basta conhecer a matéria para começar a lecionar. Nesse caso, é necessário rever a formação inicial dos docentes para dar mais ênfase às competências de transposição e de gerenciamento do saber. A habilidade se desenvolve ao longo da vida, à medida que surgem os obstáculos. Alguém que explica frações e percebe que talvez quatro de cada cinco alunos não entenderam absolutamente nada de sua aula deverá tentar na aula seguinte ser mais concreto, achar novos exemplos. Esse processo não deve acabar nunca, pois os estudantes se renovam e há sempre alguns para os quais é necessário encontrar uma linguagem nova. Idealmente, um professor que de início era compreendido por três crianças em uma classe de 30 passará a ser compreendido por seis, depois por nove e finalmente por todas.
Agir na Urgência e Decidir na Incerteza é o título de um de seus livros. Como o professor pode agir diante do imprevisível?
Quanto mais qualificado for um profissional, maior deverá ser sua capacidade de enfrentar o imprevisível. Isso se aprende, e não é apenas na carreira de professor que é preciso improvisar. Como preparar as pessoas para isso? É necessário trabalhar a dimensão afetiva: a angústia, o medo de improvisar ou a resistência em abandonar uma estratégia habitual que se revela ineficaz. É uma tarefa que exige lutar contra toda espécie de perfeccionismo e que demanda tempo. A experiência ensina o profissional a discernir uma série de fatores. Um professor experiente sabe o que acontece em sua classe, a tal ponto que seus alunos pensam que ele tem olhos nas costas! Ele escuta ruídos, percebe quando começa a agitação e quando a concentração diminui. Quanto maior sua capacidade perceptiva, maior sua habilidade em improvisar.
Fonte: Revista Nova Escola
Parabéns pelo blog. Aqui encontramos um suporte maravilhoso para os docentes que já despertaram para novas práticas.
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