segunda-feira, 13 de julho de 2009

Leitura e autoria em suportes digitais

A leitura desenvolvida em suportes virtuais utiliza escritas apoiadas em processos eletrônicos e em linguagens codificadas, que materialmente podem ser gravadas em suportes magnéticos (disquetes, cd-rom ou DVD). Muitas dessas leituras também estão disponíveis nas páginas da Internet. O suporte virtual oferece dificuldades para ser transportado, por isso, o ato de ler acaba sendo realizado em espaços circunscritos, o que vem a favorecer a leitura individual.

“Ler é mergulhar nas malhas da rede, é perder-se, é libertar-se, na medida em que a linearidade dá lugar ao hipertextual, ao móvel e flexível” (RAMAL, 2002). O hipertexto é um exemplo de texto que fugiu dos padrões e conseguiu inserir na sua constituição a hibridação; sua diferença significativa é a concepção.

A partir daqueles elos virtuais o hipernavegador pode seguir por rotas diferentes das originalmente organizadas pelo seu autor. Ou seja, os nós/elos hipertextuais diluem qualquer “contrato” supostamente firmado entre autor e leitor – como parece ocorrer nos livros convencionais – que estabeleça a chegada da viagem – leitura pelo texto eletrônico ao seu porto final.

O hipertexto concede ao leitor certas funções de autoria: a possibilidade de agregar nodos, criar conexões, utilizar filtros. O papel do autor também se expande para abranger muito mais que a simples escrita: pode assumir a apresentação e o projeto do livro, criar gráficos, produzir animações, vídeos, efeitos sonoros, fotografias ou textos orais, e determinar as diversas ações do programa.

Para Cavalcante (2004), a identidade do hipertexto virtual se dá na presença e utilização de seus constituintes internos: os nós e links. São eles que garantem a arquitetura textual assumindo um funcionamento extratextual, pois monitoram o leitor para um exterior discursivo.

Os links promovem ligações entre blocos informacionais (outros textos; fragmentos de informação: palavra; parágrafo; endereçamento) conhecidos como nós. No entanto, estes blocos não necessitam es­tabelecer uma relação sêmica entre si, isto é, as ligações possíveis não formam· necessariamente a tessitura daquele texto específico, mas promovem a abertura para outros textos.

Observe, por exemplo, a homepage do Portal do Professor; nela há links para vários materiais (Espaço da Aula, Jornal do Professor, Recursos Educacionais, Cursos e Materiais, Interação e Comunicação e Links). Esses links apontam para materiais diversos. Já no interior de um texto ou imagem, as conexões estabelecidas pelos links tendem a funcionar como as conhecidas notas de rodapé dos textos impressos. Num caso ou noutro, tais conexões promoverão a possibilidade de novos ingredientes que gravitem aquela tessitura.



Fonte: Webeduc

Hipermídia: a linguagem icônica

A hipermídia é a associação entre hipertexto e multimídia. Textos, imagens e sons tornam-se disponíveis à medida que o usuário percorre as ligações existentes entre eles. A WWW é o sistema hipermídia mais conhecido na atualidade. Sua independência de plataforma e a possibilidade de agregar novos recursos e serviços aos documentos apresentados implicam a facilidade de execução dos vários recursos pedagógicos.

Nas figuras a seguir temos exemplos de páginas Web com aplicação de recursos de hipermídia:

...........

A hipermídia amplia os princípios da escrita eletrônica para o domínio da interação, do som e da imagem. Tudo o que se perceber visual ou audiovisualmente pode fazer parte da tessitura destes documentos digitais que, por sua flexibilidade e por seu dinamismo, farão com que seja cada vez menos nítida a distinção entre escritor e leitor.

No Portal do Professor encontraremos inúmeras possibilidades de uso de ferramentas hipermidiáticas nas nossas aulas.

Fonte: Webduc

sábado, 4 de julho de 2009

Hipertexto

O hipertexto é um documento eletrônico composto de nodos ou de unidades textuais interconectados que formam uma rede de estrutura nãolinear, por meio de links, que são as conexões feitas entre nós em um hipertexto. Os nós podem ser trechos, palavras, figuras, imagens ou sons no mesmo documento ou em outro documento hipertexto.

Formado por uma série de parágrafos conectados eletronicamente entre si e com outros textos, através de múltiplas ramificações, trajetórias e enlaces, o hipertexto permite uma conexão mais próxima entre a forma do pensamento humano e sua representação escrita.
Página do MEC
Página do Salto para o Futuro
As palavras ressaltadas nos links desempenham a função de botões que conectam a outras fontes. Navegando entre estes nodos, o leitor vai criando suas próprias opções e trajetórias de leitura, o que rompe o domínio tradicional de um esquema rígido de leitura imposto pelo autor. Assim, o leitor tem a oportunidade de experimentar o texto, não só em um nível subjetivo de interpretação, mas também em um nível de manipulação objetiva dos elementos que o integram. A opção de modificar o conteúdo do texto, de conectá-lo a outros trabalhos prévios e as novas formas de acesso e de consulta mudam substancialmente o conceito tradicional do livro.

As características que distinguem um hipertexto de um texto convencional são:

Nãolinearidade – na qual não há uma ordem ou percurso predefinido a ser seguido. O autor é quem escolhe o percurso que irá seguir. O leitor percorre vários caminhos solicitados no hipertexto sem a observação de uma sequência linear, na qual se valoriza princípio, meio e fim. No hipertexto, a organização do texto não depende de um eixo central que sustenta um conjunto hierarquicamente organizado de informações secundárias; exige que o leitor faça escolhas e solicita, também, que determine tanto a ordem de acesso aos diferentes segmentos disponibilizados no hipertexto, quanto o eixo coesivo que confere um sentido global ao texto lido.

No texto convencional temos a predominância da linearidade, sequenciação, que é uma característica das línguas vernáculas, por exemplo. Convivemos com um tipo de livro que desenvolve as ideias de forma linear, em um esquema de representação mental associativo. Por outro lado, as pessoas raciocinam segundo estruturas que ora podem ser lineares, ora nãolineares, mas operam concomitantemente. A escrita não-sequencial do hipertexto permite representar um conhecimento que captura e articula, simultaneamente, componentes de natureza diversificada.

Interatividade – possibilidade de interromper uma sequência de informações e de reorientar com precisão o fluxo informacional em tempo real. É uma ferramenta para desenvolver e utilizar estruturas, pois apresenta ao usuário uma realização física dos múltiplos enlaces e inter-relações conceituais existentes em um texto, o que só pode ser representado simbolicamente no livro tradicional.

Pluritextualidade – viabiliza a absorção de diferentes aportes sígnicos numa mesma superfície de leitura tais como palavras, ícones animados, efeitos sonoros, diagramas e tabelas tridimensionais, provocando um grande impacto na percepção e processamento da leitura.

Intertextualidade – o hipertexto é um texto múltiplo, que funde e sobrepõe inúmeros textos. Textos simultaneamente acessíveis ao simples toque do mouse. Os links possibilitam um passeio por múltiplos textos, cuja ligação é determinada pelos programadores por meio de uma palavra. O link é uma ponte, um encontro entre produções textuais diferentes que propicia o fim das rígidas fronteiras entre os textos. Os autores dos hipertextos são facilitadores da leitura/navegação e convidam o leitor a construir ativamente seu próprio percurso. Para Xavier (2004), ao atualizar o hipertexto e percorrer seus links, o hiperleitor estará realizando tentativas de compreensão, efetivando gestos de interpretação ou de uso, porque, em última análise, é ele mesmo quem define a versão cabal do que será lido e compreendido.

O texto eletrônico em formato hipertextual e multimidial oferece um novo meio de leitura e de escrita, em que o usuário pode, segundo Alvarez (2002):
-  interagir de maneira mais dinâmica com a informação;
-  buscar e explorar significados com maior facilidade e eficiência;
-  enfrentar o texto desde suas próprias necessidades e expectativas;
-  vivenciar a experiência da aprendizagem por exploração e por descoberta.













A escrita eletrônica não se limita aos textos verbais, podendo os elementos de escrita serem palavras, imagens, sons, ações ou processos realizados por computador. Em vez de ler parágrafos, o leitor pode ver cenas em um vídeo, observar uma sequência de fotografias, ouvir uma narração oral ou escutar um fragmento musical.

Outro tipo de divulgação, cada vez mais presente na Internet, são os livros digitais com  conteúdo na íntegra. Como exemplo temos os livros na área de TIC no site do Núcleo de Informática na Educação da UNICAMP (NIED), publicações do Grupo de Tecnologia Educacional da Universidad de Sevilhapublicações da TV Escola: guias, revistas e cadernos. Essa tendência de digitalizar ou já se produzir no formato digital todo e qualquer documento para fins de divulgação levará à virtualização total das bibliotecas no futuro próximo. Essa realidade ainda depende da solução de muitos problemas, sendo o principal deles a questão dos direitos autorais.

NIED/Unicamp

Grupo de Tecnologia Educacional da
Universidad de Sevilla 

Revista TV Escola

Guias TV Escola



Virtual Books 
No site www.virtualbooks.com.br, há livros digitais grátis em português, em inglês e em outras quatro línguas. “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, “Os Lusíadas”, de Camões.

Portal do Professor
Som, imagem, texto, vídeo, objetos virtuais de aprendizagem e ferramentas interativas podem ser consultados e usados em http://portaldoprofessor.mec.gov.br/, site do Ministério da Educação.

Outras 18 mil bibliotecas compõem o catálogo do www.libdex.com, no qual há dezenas de endereços virtuais para cada nacionalidade. International Children Digital Library (www.icdlbooks.org) traz publicações digitais ilustradas.

Libdex

International Children Digital Library

Machado de Assis
Poesias, contos e romances compõem o acervo online. Nele, autores como Machado de Assis – que tem seus manuscritos digitalizados em www.machadodeassis.org.br – se misturam a escritores menos conhecidos, que têm na Internet uma aliada para popularizar as suas obras.

Fonte: E-Proinfo

A mídia impressa na Internet: hipertexto e hipermídia como novas interfaces textuais

Embora historicamente o livro impresso tenha sido o mais importante meio de difusão do conhecimento e o suporte das principais construções intelectuais, na atualidade ele deixou de ser o único objeto de leitura. Muitos livros deixaram de ser impressos e passaram a ser distribuídos em formato eletrônico.

A leitura e a escrita eletrônica dão ao processo de alfabetização uma dimensão completamente nova. A concepção que temos da leitura e da escrita está subordinada à natureza física e visual do meio em que elas se desenvolvem. Para nossa cultura, o espaço natural do texto escrito é a página impressa, na qual a escrita é estável e controlada, de modo exclusivo, pelo autor. O espaço oferecido pelo livro eletrônico é mais fluido e dinâmico, permite ao texto uma maior transitoriedade e mutabilidade, reduz a distância que separa o escritor do leitor e possibilita sua interação. Este novo modelo de espaço textual facilita o surgimento de outros estilos de escrita e de novas estratégias didáticas para a leitura e para a escrita.

A Internet está nos reintroduzindo à leitura e à escrita naquilo que é primariamente um ambiente baseado no texto. Também está criando novas linguagens, baseadas em termos usuais na Internet (blogs, netiqueta), em símbolos (emocticons) e siglas que são usados para comunicação (tb – também, LOL – laughing out loud – rindo alto). Essas expressões são incorporadas naturalmente à nossa linguagem escrita e representam tanto atalhos para a comunicação quanto maneiras de expressar emoção online.

Emoticons

)    estou alegre ou sorriso
:-(    estou triste
:-D    desconectar sorrindo
}:->    sacana
:-]    sorriso sarcástico
;-)    piscando o olho
:-P careta c/ a língua p/ fora
8-)   uso óculos
(:-|K-    mensagem formal
||*( aperto de mão oferecido
||*)  aperto de mão aceito
?:-)   não entendi
@&:-)    estou confuso
(:-...msg de cortar o coração
:-S   assunto sigiloso
:-X    beijões
(:-)    sou careca
:-x    beijinhos
P-)    sou pirata
:-#    censurado
|-)    estou com sono
:'(    chorando
|-O    morrendo de sono
<:-)    palhaço
O:-)    anjo / inocente
:-{)    tenho bigode
@:-)    novo penteado
:-V    gritando
:-W    falando forçado
:-)
[]'s    abraços
:-*    com soluços
:-O    bocejando
:/i    não fume
:-C    inacreditável
:-B    estou babando
:-|    muito desgostoso
:-?    lambendo os lábios
:-))    gargalhada
(:-$    doente
(:-&    com raiva
(:-(    muito triste
:-(=)    linguarudo
%-)    quebrei o óculos
:-)<* falando várias coisas


Fonte: E-Proinfo

O fim do livro e a eternidade da literatura

Carlos Heitor Cony – FSP 08/09/2000

Já está enchendo a discussão sobre o futuro do livro, tal como hoje o conhecemos. Por extensão, a mídia impressa sofre a mesma ameaça vinda da mídia eletrônica, que ainda está na sua pré-história.

Antes de mais nada, é preciso lembrar que o livro teve ancestrais em nada parecidos com o produto industrial que tomou sua forma definitiva após Gutenberg. O homem escreveu seus primeiros códigos morais e sociais em pedra, tijolos e madeira. Os dez mandamentos do Sinai vieram em forma de tábuas, embora Michelangelo tenha eternizado o seu Moisés segurando duas pedras. A escrita primitiva, feita a estilete, era da direita para a esquerda, daí que a literatura mais antiga, como a hebraica, é lida ao contrário. Os gravadores usavam a mão direita para dar a martelada, e o estilete ia da direita para a esquerda.

Povo do livro, os judeus têm como símbolo supremo de sua religião o Livro, a Torá, que são rolos de pergaminho ou papiro. Em Jerusalém, no Palácio do Livro, está exposto o Livro de Isaías tal como foi encontrado numa das cavernas de Qumran. É um imenso rolo que se desdobra à medida que se lê.

Antes mesmo de Gutenberg, o livro já adquiria o formato atual, e foi nele que se conservou a cultura e a tradição material e espiritual da humanidade. Pergunta: o que será dele quando a tecnologia conseguir telas de computador com a espessura de uma folha de papel?.

Poderemos dispensar nossas bibliotecas, conservando um único exemplar na forma aproximada de um livro tal como o conhecemos, podendo levá-lo para a cama, a praia, o banheiro, bastando acessá-lo por um provedor, que nos dará o texto integral de qualquer obra, no idioma que escolhermos, com as ilustrações e gráfico de que necessitamos.

No mesmo “livro”, poderemos ler “Guerra e Paz” e “Os Sertões”. Ou por meio de disquetes ou pela internet.

Como se vê, um problema técnico, cuja materialidade estará sempre em processo.

Mas a pergunta que importa não é sobre o futuro material do livro, que depende de papel, gráfica, tinta e acabamento. O que importa discutir é que a linguagem habitual do livro, a literária, feita de letras, sintaxe e morfologia, ganhou uma inesperada importância com o advento da linguagem digital.

Pois a verdade é que a linguagem visual, da imagem que se move, que tem cor e movimento, que tem som e pode até ter cheiro, começava a dominar a cultura moderna. Jovens na fase dos 25 aos 30 anos já resistiam à linguagem das letras, uma vez que foram educados a partir de imagens e ícones que, com simplicidade e eficiência, transmitiam informações mais completas e instantâneas.

Acontece que, com a linguagem digital colocada em circuito pela rede eletrônica, os jovens que agora estão chegando à fase do consumo de informações, por bem ou por mal, estão voltando à expressão literária, rudimentar embora, mas sujeita ao aprimoramento natural determinado pela própria necessidade de se exprimir.

Não faz muito, um jovem normal, independente de sua escolaridade, possuía um vocabulário padrão, paupérrimo, reduzido ao mínimo, ao legal, ao “morou”, ao “cara” e a outras simplificações que, de certo modo, eram bastantes para a comunicação entre os iguais.

Com a chegada dos e-mails, dos sites virtuais, essas necessidades aumentaram e, embora continuem a ser usados símbolos, ícones e imagens, nota-se que a palavra impressa literariamente é indispensável. Daí a sobrevivência da linguagem propriamente dita, em sua forma convencional, que não será vencida pela linguagem meramente visual e animada.

É impossível deter a geleia que isso começa a provocar na cabeça dos meninos de 10 a 12 anos que sentem necessidade cada vez maior da comunicação impressa. Aos poucos, eles estão descobrindo o universo literário em sua acepção mais clássica, precisam lidar com sujeitos, verbos e complementos, dar valor a determinadas palavras, juntá-las de forma articulada e pessoal.

Ou seja: é um retorno à literatura. E, gradualmente, esse universo irá se ampliando. É impressionante o número de e-mails que recebemos de jovens, na fase dos 14 aos 15 anos, divagando sobre tema os mais variados, e muito deles insensivelmente, apelando para pequenos contos ou crônicas, recurso impensável antes da Internet, pois só era usado em salas de aula que ajudavam a formar o desdém pela linguagem literária impressa.

Discutir a sobrevivência do livro, como objeto material, é ocioso. Como produto industrial, ele estará sujeito às transformações da técnica e da circunstância. Agora, o espírito da letra, a necessidade da letra como símbolo de expressão, reflexão e comunicação, isso nada tem a temer da linguagem digital. Pelo contrário: ela ajudou a velha letra, que nossos ancestrais grafavam na pedra ou na madeira, a vencer a força e a comodidade da imagem. Não adianta colocar Ingrid Bergman beijando Humphrey Bogart para transmitir a beleza e a necessidade de que sentimos toda vez que amamos. Nada substitui a simplicidade, a maravilhosa assombração do “eu te amo”.

Fonte: E-Proinfo

A reinvenção da biblioteca

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

A PROFESSORA de português  Alda Beraldo nem se deu conta de que estava inventando um novo tipo de biblioteca: no lugar de estantes numa sala fechada, cestas amarradas num jegue estacionado debaixo de uma árvore. ''É uma sensação entre as crianças e seus pais."

Alda veio de Americana para morar em São Paulo atraída pela chance de cursar letras na USP e pela sedução da noite paulistana. "Sempre adorei a efervescência noturna." Formada, dedicou-se a ensinar poesia para estudantes e a fazê-los escrever versos. Uma tarefa árdua. Mas ela aprendeu a mostrar as palavras como peças de um jogo. ''A poesia é quase uma brincadeira de esconde-esconde, na qual se revelam sentimentos universais e profundos."

No ano passado, ela recebeu uma proposta para disseminar os encantos da literatura numa cidadezinha de 24 mil habitantes espalhados em comunidades rurais, bem longe do agito cultural paulistano. A maioria das 
casas é de taipa, cobertas com ramos de babaçu. Teria de passar alguns dias todos os meses em Alto Alegre do Pindaré, ao sul do Maranhão, onde quase não existem livros, treinando professores e diretores. "O índice de analfabetismo é altíssimo. Nem os estudantes, nem seus pais, nem seus professores têm o hábito de leitura. Fora dos livros didáticos, só a Bíblia".

Como é grande distância entre os povoados que formam Alto Alegre do Pindaré, Alda percebeu que teria que fazer uma biblioteca móvel Mas a prefeitura não dispunha de um carro para esse tarefa. ''Mas sobravam jegues." Capacitou estudantes mais velhos para conduzir o jegue e contar as histórias debaixo da árvore - a "bibliojegue': como foi apelida, começou a se locomover no mês passado. "Quando o jegue carregado de livros vai chegando, as crianças, animadas, parecem que estão atrás do circo."

Ela precisou ir muito longe de São Paulo,para que pudesse, embaixo da árvore, ao lado de um jegue, reaprender o encantos das letras. "Vi mulheres analfabetas que choraram ouvindo pela primeira vez uma poesia."
Fonte: E-Proinfo

Muito além da internet

Dezembro/2003
Umberto Eco

Em palestra na Biblioteca de Alexandria, no Egito, o autor de "O Nome da Rosa" explica por que a expansão da grande rede não ameaça a existência dos livros
Temos três tipos de memória. O primeiro é orgânico, que é a memória feita de carne e de sangue e administrada pelo nosso cérebro. O segundo é mineral, e, nesse sentido, a humanidade conheceu dois tipos de memória mineral: milênios atrás, foi essa a memória representada por tijolos de argila e por obeliscos, muito conhecidos neste país, nos quais as pessoas entalhavam seus textos. Porém esse segundo tipo é também a memória eletrônica dos computadores de hoje, que tem por base o silício.

Conhecemos também outro tipo de memória, a memória vegetal, representada pelos primeiros papiros, de novo muito conhecidos neste país, e posteriormente pelos livros, feitos de papel. Permitam que eu desconsidere o fato de que, em certo momento, o velino dos primeiros códices foi de origem orgânica e o fato de que o primeiro papel foi feito de trapos, e não de madeira. Permitam que, no interesse da simplicidade, eu fale em memória vegetal para referir-me aos livros.

Este local foi, no passado, e será, no futuro, dedicado à conservação de livros; portanto é e será um templo da memória vegetal. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais importante de conservar nosso saber coletivo. Foram e são ainda uma espécie de cérebro universal onde podemos reaver o que esquecemos e o que ainda não sabemos.

Se me permitirem usar essa metáfora, uma biblioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma mente divina, onde o universo inteiro é visto e compreendido ao mesmo tempo. Uma pessoa capaz de guardar em sua mente a informação suprida por uma grande biblioteca emularia, de certo modo, com a mente de Deus. Em outras palavras, inventamos bibliotecas porque sabemos que não possuímos poderes divinos, mas tentamos ao máximo imitá-los.

Construir, ou melhor, reconstruir hoje uma das mais célebres bibliotecas do mundo pode soar como um desafio, uma provocação. Acontece, não raro, que em artigos de jornais ou em ensaios universitários alguns autores, diante da nova era do computador e da internet, se refiram à possível "morte dos livros". Porém, se os livros estiverem em via de desaparecer, como ocorreu com os obeliscos ou com os tijolos de argila das civilizações antigas, não será esse um bom motivo para abolir as bibliotecas. Ao contrário, devem sobreviver como museus que guardam as descobertas do passado, assim como guardamos a Pedra de Rosetta [bloco de basalto negro, com inscrições em egípcio e grego, descoberto pelos soldados de Napoleão, em 1799, a 56 km de Alexandria e que se tornaria fundamental para a compreensão da civilização egípcia] num museu porque já não estamos acostumados a entalhar nossos documentos em superfícies minerais.

Mas o meu elogio às bibliotecas será um pouco mais otimista. Pertenço àqueles que ainda acreditam que livros impressos têm um futuro e que todos os receios "à propos" de seu desaparecimento são apenas o exemplo derradeiro de outros medos ou de terrores milenaristas em torno do fim de alguma coisa, inclusive do mundo.

Em muitas entrevistas, fui obrigado a responder perguntas como: "Os novos meios eletrônicos tornarão os livros obsoletos? Será que a internet tornará a literatura obsoleta? A civilização hipertextual eliminará a própria ideia de autoria?". Como podemos ver, se tivermos uma mente normal e bem equilibrada, essas são perguntas diferentes e, levando em conta o tom apreensivo em que são formuladas, podemos pensar que o entrevistador se sentiria reconfortado ao respondermos: "Não, fique tranquilo, está tudo bem". Engano.

Se dissermos a essas pessoas que os livros, a literatura e a autoria não vão desaparecer, elas se mostrarão desesperadas. Mas então, onde está o furo de reportagem? Publicar a notícia de que um vencedor do Prêmio Nobel morreu é notícia; dizer que ele está vivo e passa bem não interessa a ninguém, salvo a ele mesmo, suponho.

O que pretendo fazer, hoje, é tentar desemaranhar uma mixórdia de receios entrelaçados acerca de problemas diversos. Clarear nossas ideias acerca desses problemas diversos pode também nos ajudar a compreender melhor o que, em geral, entendemos por livro, texto, literatura, interpretação e assim por diante. Desse modo, veremos como, a partir de uma pergunta tola, se podem produzir muitas respostas sábias, e essa provavelmente é a função cultural de entrevistas ingênuas.

Comecemos com uma história egípcia, muito embora contada por um grego. Segundo Platão, em "Fedro", quando Hermes -ou Thot, o suposto inventor da escrita- apresentou sua invenção para o faraó Thamus, este louvou tal técnica inaudita, que haveria de permitir aos seres humanos recordarem aquilo que, de outro modo, esqueceriam.

Mas Thamus não ficou inteiramente satisfeito. "Meu habilidoso Thot", disse ele, "a memória é um dom importante que se deve manter vivo mediante um exercício contínuo. Graças a sua invenção, as pessoas não serão mais obrigadas a exercitar a memória. Lembrarão coisas não em razão de um esforço interior, mas apenas em virtude de um expediente exterior".

Platão contra a escrita

Podemos compreender a preocupação de Thamus. Escrever, como qualquer nova invenção tecnológica, entorpeceria a faculdade humana que almejava substituir e ampliar. Escrever era perigoso porque reduzia o poder da mente ao fornecer aos seres humanos uma alma petrificada, uma caricatura da mente, uma memória mineral.

O texto de Platão é irônico, está claro. Platão escrevia sua tese contra a escrita. Mas também fingia que seu discurso era proferido por Sócrates, que não escrevia (como não publicava, sucumbiu no curso da batalha acadêmica, cujo lema é: publicar ou morrer). Hoje, ninguém compartilha as preocupações de Thamus por duas razões muito simples. Primeiramente, sabemos que livros não são um meio de fazer outra pessoa pensar em nosso lugar; ao contrário, são máquinas que suscitam outros pensamentos. Só depois da invenção da escrita, foi possível escrever uma obra-prima de memória espontânea como "Em Busca do Tempo Perdido".

Em segundo lugar, se de vez em quando as pessoas precisavam exercitar a memória para lembrar coisas, após a invenção da escrita tiveram também de exercitar a memória para lembrar dos livros. Livros desafiam e aprimoram a memória; não a entorpecem. No entanto o faraó dava testemunho de um temor eterno: o temor de que uma nova proeza tecnológica pudesse matar algo que consideramos precioso e frutífero.

Usei o verbo matar de propósito porque, cerca de 14 séculos mais tarde, Victor Hugo, em seu romance "Nossa Senhora de Paris", narrou a história de um padre, Claude Frollo, que olhava tristonho para as torres da sua catedral. A história de "Nossa Senhora de Paris" se passa no século 15, após a invenção da imprensa. Antes disso, os manuscritos estavam reservados a uma elite restrita de pessoas alfabetizadas e, para ensinar às massas as histórias da Bíblia, a vida de Cristo e dos santos, os princípios morais, até mesmo os feitos da história nacional ou as noções mais elementares de geografia e de ciências naturais (a natureza de povos desconhecidos e as virtudes de pedras e de ervas), só se podia contar com as imagens de uma catedral. Uma catedral medieval era uma espécie de programa de tevê permanente e imutável, destinado a transmitir às pessoas tudo o que era indispensável para a sua vida cotidiana, assim como para a sua salvação eterna.

Agora, porém, Frollo tem sobre a sua mesa um livro impresso e ele sussurra: "Ceci tuera cela" - isto vai matar aquilo ou, em outras palavras, o livro vai matar a catedral, o alfabeto vai matar as imagens. O livro vai desviar as pessoas de seus valores mais importantes, incentivar informação supérflua, a livre interpretação das Escrituras sagradas, uma curiosidade insana.

Na década de 1960, Marshall McLuhan escreveu seu livro "A Galáxia de Gutemberg", no qual declarava que a maneira linear de pensar, respaldada pela invenção da imprensa, estava em via de ser substituída por um modo mais global de percepção e de compreensão, por meio de imagens de TV ou de outros tipos de aparelho eletrônico. Se não McLuhan, certamente muitos de seus leitores apontaram o dedo para a tela da TV e depois para o livro impresso e disseram: "Isto vai matar aquilo".

Se ainda estivesse entre nós, hoje, McLuhan seria o primeiro a escrever algo como "Gutemberg contra-ataca". Sem dúvida, um computador é um instrumento por meio do qual é possível produzir e editar imagens, sem dúvida as instruções são fornecidas por ícones; mas também não há dúvida de que o computador se tornou, acima de tudo, um instrumento alfabético. Em sua tela, correm palavras e linhas escritas e, para usar um computador, é preciso saber ler e escrever.

Galáxias de Gutemberg

Há diferenças entre a primeira galáxia de Gutemberg e a segunda? Muitas. Primeiro, só os processadores de texto arqueológicos do início da década de 80 ofereciam um tipo de comunicação escrita linear. Hoje, os computadores não são mais lineares, pois apresentam uma estrutura hipertextual. Curiosamente, o computador nasceu como uma máquina de Turing, capaz de dar um passo de cada vez, e, de fato, nas profundezas da máquina, a linguagem ainda opera dessa maneira, por uma lógica binária, de zero-um.

Porém o produto da máquina não é mais linear: é uma explosão de fogos de artifício semióticos. Seu modelo é menos uma linha reta do que uma verdadeira galáxia, onde todos podem captar nexos inesperados entre estrelas diferentes para formar uma nova imagem celestial em qualquer novo ponto de navegação.

Contudo é exatamente nesse ponto que a nossa atividade de desemaranhar deve ter início, porque, por estrutura hipertextual, entendemos em geral dois fenômenos muito distintos. Primeiro, há o texto hipertextual. Num livro tradicional, deve-se ler da esquerda para a direita (ou da direita para a esquerda, segundo culturas diversas) de um modo linear. Pode-se obviamente saltar páginas, pode-se, depois de chegar à página 300, voltar para verificar ou reler algo na página 10, mas isso implica trabalho físico.

Em contraste, um texto hipertextual é uma rede multidimensional ou um labirinto em que cada ponto ou nó pode ser potencialmente ligado a qualquer outro nó. Em segundo lugar, há o hipertexto sistêmico. A "www" é a Grande Mãe de Todos os Hipertextos, uma biblioteca mundial onde podemos ou poderemos, em breve, pegar todos os livros que quisermos. A internet é o sistema geral de todos os hipertextos existentes.

Tal diferença entre texto e sistema é imensamente importante e devemos voltar a ela. Por ora, deixem-me dar cabo da pergunta mais ingênua que se faz frequentemente, na qual essa diferença ainda não está tão nítida. Mas é ao responder essa primeira pergunta que poderemos esclarecer nossa questão posterior. A pergunta ingênua é: "Os disquetes hipertextuais, a internet ou os sistemas de multimídia tornaram os livros obsoletos?".

Com essa pergunta, chegamos ao capítulo final na nossa história isto-vai-matar-aquilo. Mas mesmo essa pergunta é confusa, pois pode ser formulada de duas maneiras: (a) os livros desaparecerão como objetos físicos? e (b) os livros desaparecerão como objetos virtuais?

Permitam-me responder à primeira pergunta. Mesmo após a invenção da imprensa, os livros nunca foram o único instrumento para adquirir informação. Havia também pinturas, imagens populares impressas, lições orais e assim por diante. Simplesmente, os livros provaram ser o instrumento mais adequado para transmitir informação. Existem dois tipos de livros: os que são para ler e os que são para consultar. No tocante aos livros para ler, a maneira normal de ler é a que eu chamaria de "maneira de história de detetive". Começa-se da página um, onde o autor conta que um crime foi cometido, seguem-se todas as trilhas do processo investigativo até o fim e se descobre, afinal, que o culpado era o mordomo.

Fim do livro e fim da experiência de leitura. Notem que o mesmo ocorre até quando se lê, digamos, um tratado de filosofia. O autor quer que abramos o livro na primeira página, sigamos a série de questões que propõe e vejamos como alcança determinadas conclusões finais. Sem dúvida, os estudiosos podem reler tal livro saltando de uma página para outra, na tentativa de isolar um possível nexo entre uma afirmação no primeiro capítulo e uma outra, no último. Podem também resolver isolar, digamos, cada ocorrência da palavra "ideia" numa determinada obra, saltando, desse modo, centenas de páginas a fim de concentrar a atenção apenas em trechos que tratem dessa noção. Porém essas são maneiras de ler que um leigo consideraria antinaturais.

Além disso, há os livros de consulta, como manuais e enciclopédias. As enciclopédias são concebidas com o propósito de serem consultadas e jamais lidas da primeira à última página. Uma pessoa que lesse a "Enciclopédia Britânica" toda noite antes de dormir, da primeira à última página, seria um personagem cômico. Em geral, pega-se um volume de uma enciclopédia para saber ou lembrar quando Napoleão morreu ou qual é a fórmula química do ácido sulfúrico. Os estudiosos usam a enciclopédia de um modo mais sofisticado.

Napoleão e Kant

Por exemplo, se quisesse saber se era possível ou não Napoleão encontrar-se com Kant, eu teria de pegar o volume K e o volume N da minha enciclopédia: descubro que Napoleão nasceu em 1769 e morreu em 1821, Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, quando Napoleão já era imperador. Portanto não seria impossível que os dois se encontrassem. Para confirmá-lo, eu provavelmente teria de consultar uma biografia de Kant ou uma de Napoleão, mas em uma curta biografia de Napoleão, que encontrou tantas pessoas ao longo da vida, um possível encontro com Kant pode ser relegado, ao passo que, numa biografia de Kant, um encontro com Napoleão seria registrado. Em resumo, tenho de folhear muitos livros em muitas prateleiras de minha biblioteca; tenho de tomar notas a fim de, mais tarde, comparar os dados que coligi. Tudo isso me vai custar um árduo esforço físico.

De outro lado, no entanto, com o hipertexto, posso navegar por toda a rede-ciclopédia. Posso ligar um fato registrado no início a uma série de fatos disseminados ao longo de todo o texto; posso comparar o início com o fim; posso solicitar uma lista de todas palavras que começam com a letra A; posso pedir todos os trechos em que o nome de Napoleão esteja ligado ao de Kant; posso comparar as datas de seus nascimentos e de suas mortes -em resumo, posso fazer meu trabalho em poucos segundos ou minutos.

Os hipertextos, sem dúvida, tornarão obsoletos os manuais e as enciclopédias. Ontem, era possível ter uma enciclopédia inteira em CD-ROM; hoje, é possível ter a enciclopédia ligada em linha, com a vantagem de que isso permite o cruzamento de referências e a recuperação nãolinear de informação. Todos os CDs e mais o computador ocuparão um quinto do espaço ocupado por uma enciclopédia impressa.

Uma enciclopédia impressa não pode ser facilmente transportada, como ocorre com um CD-ROM, e não pode ser facilmente atualizada. As prateleiras hoje ocupadas em minha casa e nas bibliotecas públicas por metros e metros de enciclopédias poderão ser eliminadas num futuro próximo e não haverá razão para lamentar o seu desaparecimento. Lembremos que, para muita gente, uma enciclopédia de muitos volumes é um sonho impossível, não, ou não só, por causa do preço dos volumes, mas em razão do preço da parede onde os volumes são dispostos em prateleiras.

Pessoalmente, tendo começado minha atividade acadêmica como um medievalista, eu gostaria de ter em casa os 221 volumes da "Patrologia Latina", de Migne. Isso é muito caro, mas eu poderia pagar. O que não poderia pagar era um outro apartamento onde depositar os 221 grossos volumes, sem ser obrigado a me livrar de pelo menos outros 500 livros de tamanho normal.

Porém pode um disco hipertextual ou a "www" substituir os livros que são feitos para ler? De novo temos de decidir se a pergunta se refere a livros como objetos físicos ou virtuais. De novo, tratemos primeiro do problema físico.

Boas notícias: os livros continuarão indispensáveis, não só para a literatura, mas também para quaisquer circunstâncias em que é preciso ler com cuidado, não só com o intuito de receber informações, mas também de especular e refletir sobre elas. Ler uma tela de computador não é o mesmo que ler um livro. Pensem no processo de aprendizagem de um novo programa de computador. Em geral, o programa pode apresentar na tela todas as instruções necessárias. Mas, em geral, os usuários que querem aprender a usar o programa ou imprimem as instruções e as leem como num livro ou compram um manual impresso. É possível imaginar um programa visual que explique muito bem como imprimir e encadernar um livro, mas para obter instruções sobre como escrever ou como usar um programa de computador precisamos de um manual impresso.

Nova forma de letramento

Após passar 12 horas diante de uma mesa de computador, meus olhos parecem duas bolas de tênis e sinto a necessidade de me recostar confortavelmente numa poltrona e ler um jornal ou talvez um bom poema. Portanto creio que os computadores estão difundindo uma nova forma de letramento, mas são incapazes de satisfazer todas as necessidades intelectuais que estimulam. Por favor, recordem que as antigas civilizações hebraica e árabe tinham por base um livro, e isso não foi independente da circunstância de terem sido civilizações nômades.

Os antigos egípcios podiam entalhar seus registros em obeliscos de pedra; Moisés e Maomé não podiam. Quando se pretende atravessar o mar Vermelho ou ir da península Arábica até a Espanha, um rolo de pergaminho é um instrumento mais prático para registrar e transportar a Bíblia ou o Corão do que um obelisco. Por isso essas duas civilizações alicerçadas em um livro privilegiaram a escrita em detrimento das imagens. Mas os livros também têm outra vantagem em relação aos computadores. Mesmo quando impressos no moderno papel ácido que dura apenas 70 anos, aproximadamente, os livros são mais duráveis do que o suporte magnético. Além disso, não são afetados por escassez de energia ou por blecautes e são mais resistentes a impactos.

Até agora, os livros representam o modo mais barato, flexível e prático de transportar informação a um custo muito baixo. A comunicação por computador viaja à nossa frente; os livros viajam conosco e na nossa velocidade. Se somos náufragos numa ilha deserta, onde não temos a opção de ligar um computador na tomada, um livro ainda é um instrumento de muita valia. Mesmo que nosso computador tenha bateria de energia solar, não é fácil ler a tela deitado numa rede. Os livros são ainda os melhores companheiros para um naufrágio ou para os dias seguintes. Livros pertencem a essa classe de instrumentos, que, uma vez inventados, não foram aprimorados porque já estão bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura.

Fim das livrarias

Duas invenções novas, porém, estão prestes a ser exploradas industrialmente. Uma é a impressão por encomenda: após vasculhar os catálogos de várias bibliotecas ou editoras, um leitor pode selecionar o livro desejado, o operador apertará um botão e a máquina imprimirá e encadernará um único exemplar usando a fonte que o leitor desejar. Sem dúvida, isso vai modificar todo o mercado editorial. Provavelmente, eliminará as livrarias, mas não os livros, e não eliminará as bibliotecas, o único local onde os livros podem ser encontrados para que o leitor os examine e os reimprima. Em termos mais simples: todos os livros serão confeccionados segundo o desejo do comprador, como acontecia com os antigos manuscritos.

A segunda invenção é o livro eletrônico, em que, introduzindo um microdisquete na lombada do livro ou ligando-o à internet, podemos ter um livro estampado à nossa frente. Mesmo nesse caso, contudo, ainda teremos um livro, embora tão diferente de nossos livros atuais quanto estes diferem dos antigos manuscritos em pergaminho e quanto o primeiro fólio de Shakespeare de 1623 difere da mais recente edição da editora Penguin. Porém, até agora, os livros eletrônicos não se mostraram comercialmente viáveis como seus inventores esperavam. Disseram-me que certos hackers, que cresceram diante de computadores e não têm o costume de folhear livros, leram afinal grandes obras-primas da literatura na forma de livros eletrônicos, mas creio que tal fenômeno permanece muito restrito.

Em geral, as pessoas parecem preferir o modo tradicional de ler um poema ou um romance em papel impresso. Provavelmente, livros eletrônicos se revelarão úteis para consultar informações, como ocorre com dicionários ou documentos específicos. Provavelmente ajudarão estudantes obrigados a levar consigo dez livros ou mais quando vão à escola, mas não substituirão outros tipos de livro, que gostamos de ler na cama, antes de dormir, por exemplo.

De fato, há numerosas criações tecnológicas que não tornaram obsoletas as anteriores. Carros correm mais do que bicicletas, mas não tornaram obsoletas as bicicletas, e nenhum aprimoramento tecnológico pode tornar uma bicicleta melhor do que foi antes. A ideia de que uma nova tecnologia abole uma tecnologia anterior é, com frequência, demasiado simplista. Após a invenção da fotografia, os pintores não mais se sentiram obrigados a servir de artífices cuja tarefa era reproduzir a realidade, mas isso não significa que a invenção de Daguerre apenas estimulou a pintura abstrata.

Há toda uma tradição na pintura moderna que não poderia ter existido sem os modelos fotográficos: pensem, por exemplo, no hiper-realismo. Aqui, a realidade é vista pelo olho do pintor através da lente fotográfica. Isso significa que, na história da cultura, nunca houve um caso em que uma coisa simplesmente tenha matado uma outra coisa. Em vez disso, uma nova invenção sempre alterou profundamente uma outra, mais antiga.

Para concluir essa questão da impertinência da ideia do desaparecimento físico dos livros, digamos que às vezes esse temor não se refere apenas a livros, mas ao material impresso em geral. Infelizmente, se porventura alguém teve a esperança de que os computadores e sobretudo os processadores de texto contribuiriam para salvar árvores, foi otimismo ingênuo. Ao contrário, os computadores fomentam a produção de material impresso. O computador cria novas modalidades de produção e difusão de documentos impressos. Para reler um texto e corrigi-lo, se não for apenas uma breve carta, é preciso imprimir, depois reler, em seguida corrigir no computador e reimprimi-lo. Não creio que alguém possa escrever um texto de centenas de páginas e corrigi-lo sem reimprimi-lo várias vezes.

Nexo hipertextual

Hoje, existe uma nova poética hipertextual segundo a qual mesmo um livro feito para ler, mesmo um poema, pode ser convertido em hipertexto. Nesse ponto, estamos passando para a pergunta número dois, pois o problema não é mais -ou não é somente- físico, mas concerne à própria natureza da atividade criativa, do processo da leitura, e, para desemaranhar essa mixórdia de perguntas, temos, primeiro, de decidir o que entendemos por nexo hipertextual.

Observem que, se a questão dissesse respeito à possibilidade de infinitas ou indefinidas interpretações da parte do leitor, teria muito pouco a ver com o problema em discussão. Teria a ver, isso sim, com a poética de um Joyce, por exemplo, que entendia seu livro "Finnegans Wake" como um texto que poderia ser lido por um leitor ideal acometido por uma insônia ideal. Essa questão afeta os limites da interpretação, da leitura desconstrutiva e da sobreinterpretação, a que dediquei outros escritos. Não: o que está em consideração no momento são casos em que a infinidade - ou pelo menos a abundância indefinida - de interpretações se deve não só à iniciativa do leitor, mas também à mobilidade física do próprio texto, que é produzido exatamente com o propósito de ser reescrito. A fim de compreender como os textos desse tipo podem operar, temos de decidir se o universo textual que estamos discutindo é limitado e finito ou limitado, mas virtualmente infinito, ou infinito, mas limitado, ou ilimitado e infinito.

Primeiramente, devemos traçar uma distinção entre sistemas e textos. Um sistema, por exemplo, um sistema linguístico, é a totalidade das possibilidades apresentadas por uma dada língua natural. Um conjunto finito de regras gramaticais permite ao falante produzir um número infinito de frases, e toda unidade linguística pode ser interpretada nos termos de outras unidades linguísticas ou semióticas -uma palavra por uma definição, um evento por um exemplo, um animal ou uma flor por uma imagem e assim por diante.

Tomemos um dicionário enciclopédico, por exemplo. Ele pode definir um cão como um mamífero, e então temos de ir à entrada "mamífero" e, se lá os mamíferos são definidos como animais, temos de procurar a entrada "animal" e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, as características dos cães podem ser exemplificadas por imagens de cães de vários tipos; caso se diga que certo tipo de cão vive na Lapônia, temos de ir à entrada sobre a Lapônia para saber onde fica e assim sucessivamente. O sistema é finito, e uma enciclopédia é fisicamente limitada, mas virtualmente ilimitada, no sentido de podermos circunavegar dentro dela, em espiral, "ad infinitum".

Sob esse aspecto, sem dúvida, todos os livros imagináveis estão compreendidos em um bom dicionário e em uma boa gramática. Se estivermos aptos a usar bem um dicionário de inglês, poderemos escrever "Hamlet", e é por mero acaso que outra pessoa o fez antes de nós. Entreguemos um mesmo sistema textual a Shakespeare e a um aluno do ensino fundamental e ambos terão as mesmas chances de produzir "Romeu e Julieta".

Gramáticas, dicionários e enciclopédias são sistemas: ao usá-los, podemos produzir todos os textos que quisermos. Mas um texto propriamente dito não é um sistema linguístico ou enciclopédico. Um texto dado reduz as possibilidades infinitas ou indefinidas de um sistema para criar um universo fechado. Se pronuncio a frase "nesta manhã, comi no desjejum...", por exemplo, o dicionário me permite listar muitas unidades possíveis, contanto que todas sejam orgânicas. Mas, se eu produzo meu texto de forma definida e pronuncio "nesta manhã, comi no desjejum pão e manteiga", excluí o queijo, o caviar, o pastrami e as maçãs. Um texto castra as possibilidades infinitas de um sistema. "As Mil e uma Noites" podem ser interpretadas de muitas, muitas maneiras, mas a história se passa no Oriente Médio, e não na Itália, e relata, digamos, as façanhas de Ali Babá ou de Xerazade, e não se refere a um capitão determinado a capturar uma baleia branca nem a um poeta toscano em visita ao inferno, ao purgatório e ao paraíso.

Tomemos um conto de fadas, como "Chapeuzinho Vermelho". O texto parte de um conjunto de personagens e situações - uma menina, uma avó, um lobo, uma floresta- e, por meio de uma série finita de passos, chega a um desfecho. Sem dúvida, podemos ler o conto como uma alegoria e atribuir diferentes significados morais aos fatos e às ações dos personagens, mas não podemos transformar "Chapeuzinho Vermelho" em "Cinderela". "Finnegans Wake" é, sem dúvida, aberto a muitas interpretações, mas é certo que nunca nos dará uma demonstração do teorema de Fermat ou uma bibliografia completa de Woody Allen. Isso parece banal, mas o equívoco radical de muitos desconstrucionistas foi crer que podemos fazer o que bem entendermos com um texto. Isso é clamorosamente falso.

Agora suponham que um texto finito e limitado está organizado de forma hipertextual por muitos nexos que ligam determinadas palavras a outras. Num dicionário ou numa enciclopédia, a palavra "lobo" está potencialmente ligada a toda palavra que faça parte da sua possível definição ou descrição (lobo está ligado a animal, a mamífero, a feroz, a pernas etc.). Em "Chapeuzinho Vermelho", o lobo pode estar ligado apenas às seções textuais em que ele se manifesta ou em que é explicitamente evocado. A série de nexos possíveis é finita e limitada. Como podem as estratégias hipertextuais ser usadas para "abrir" um texto limitado e finito?

Commedia dell'arte

A primeira possibilidade é tornar o texto fisicamente ilimitado, no sentido de poder uma história ser enriquecida pelas contribuições sucessivas de autores diversos e, num duplo sentido, digamos, de forma bidimensional ou tridimensional. Entendo por isso que em "Chapeuzinho Vermelho", por exemplo, o primeiro autor propõe uma situação inicial (a menina entra na floresta) e colaboradores diversos podem, em seguida, desenvolver a história, um após o outro, por exemplo, ao fazer a menina encontrar Ali Babá, em lugar do lobo, ao fazer ambos entrarem num castelo encantado, defrontarem-se com um crocodilo mágico e assim por diante, de sorte que a história pode prosseguir anos a fio.

Mas o texto também pode ser infinito, no sentido de poderem muitos autores fazer muitas opções diversas, a cada disjunção narrativa, por exemplo, quando a menina entra na floresta. Para um determinado autor, a menina pode encontrar Pinóquio; para outro, ela pode ser transformada num cisne ou entrar nas pirâmides e descobrir o tesouro do filho de Tutancâmon.

Isso hoje é possível, e podemos encontrar na internet alguns exemplos interessantes de tais jogos literários.

Nesse ponto, pode-se levantar a questão da sobrevivência da própria noção de autoria e de obra de arte, como um conjunto orgânico.

E eu quero simplesmente informar à minha plateia que isso já ocorreu no passado, sem perturbar nem a autoria nem os conjuntos orgânicos. O primeiro exemplo é o da comedia dell'arte italiana, em que, a partir de um "canovacio", ou seja, uma sinopse histórica, cada apresentação diferia das demais, conforme a disposição e a imaginação dos atores, de sorte que não podemos identificar uma obra única, escrita por um autor único, intitulada "Arlecchino Servo di Due Padroni", e podemos apenas registrar uma série ininterrupta de apresentações, em sua maioria perdidas para sempre e, sem dúvida, diferentes umas das outras.

Ausência de autoria

Outro exemplo seria uma sessão de jazz. Podemos crer que houve, outrora, uma execução superior de "Basin Street Blues", embora só tenha sobrevivido uma execução gravada posteriormente, mas sabemos que isso é falso. Houve tantas "Basin Street Blues" quantas foram suas execuções, e, no futuro, haverá muitas outras, sobre as quais ainda não sabemos, tão logo dois ou mais músicos se encontrem outra vez e experimentem sua versão pessoal e inventiva do tema original. O que quero dizer é que já estamos acostumados à ideia da ausência da autoria na arte popular coletiva, em que cada participante acrescenta alguma coisa, com experiências de história intermináveis, à semelhança do que ocorre no jazz. Tais maneiras de implementar a criatividade livre são bem-vindas e fazem parte do tecido cultural da sociedade.

Porém há uma diferença entre implementar a atividade de produzir textos infinitos e ilimitados e a existência de textos já produzidos, que podem, talvez, ser interpretados de infinitas maneiras, mas que são fisicamente limitados. No interior da nossa cultura contemporânea, aceitamos a avaliamos segundo diversos critérios tanto uma nova execução da "Quinta Sinfonia" de Beethoven como uma nova jam session do tema de "Basin Street".

Nesse sentido, não vejo como o fascinante jogo de produzir histórias coletivas e infinitas por meio da internet possa nos privar da literatura autoral e da arte em geral. A rigor, marchamos rumo a uma sociedade mais liberada, em que a criatividade livre vai coexistir com a interpretação de textos já escritos. Eu gosto disso. Mas não podemos dizer que substituímos uma coisa antiga por uma nova. Temos as duas.

Zapear a tevê é outra atividade que nada tem a ver com assistir a um filme, no sentido tradicional. Esse expediente hipertextual permite que inventemos novos textos que nada têm a ver com a nossa capacidade de interpretar textos preexistentes. Tentei desesperadamente encontrar um exemplo de situação textual ilimitada e finita, mas não consegui. De fato, se temos à disposição um número infinito de elementos, por que nos limitarmos à produção de um universo finito?

É uma questão teológica, uma espécie de esporte cósmico em que alguém -ou Alguém- poderia implementar todo e qualquer desempenho possível, mas prescreve a si mesmo uma regra, ou seja, limita, e engendra um universo pequeno e muito simples. Permitam-me, porém, examinar outra possibilidade que à primeira vista promete um número infinito de possibilidades com um número finito de elementos, como um sistema semiótico, mas na realidade oferece apenas uma ilusão de liberdade e de criatividade.

Um hipertexto pode dar a ilusão de abrir mesmo um texto fechado: uma história de detetive pode ser estruturada de tal modo que seus leitores podem selecionar sua própria solução, decidir no fim se o culpado será o mordomo, o bispo, o detetive, o narrador, o autor ou o leitor. Assim, eles podem montar sua própria história pessoal. Tal ideia não é nova. Antes da invenção dos computadores, poetas e narradores sonhavam com um texto totalmente aberto, que os leitores pudessem recompor infinitamente, de várias maneiras. Tal era a ideia de "Le Livre", exaltada por Mallarmé. Raymond Queneau também inventou um algoritmo combinatório mediante o qual era possível compor, a partir de um conjunto finito de versos, milhões de poemas.

No início da década de 1960, Max Saporta escreveu e publicou um romance cujas páginas poderiam ser deslocadas para compor histórias diferentes, e Nanni Balestrini deu a um computador uma lista desconexa de versos que a máquina combinava de maneiras diferentes para compor poemas diferentes. Muitos músicos contemporâneos produziram partituras cuja manipulação permite compor diversas execuções musicais.

Todos esses textos fisicamente móveis dão uma impressão de liberdade absoluta para o leitor, mas é só uma impressão, uma ilusão de liberdade. O mecanismo que permite a alguém produzir um texto infinito com número finito de elementos existe há milênios e é o alfabeto. Ao usar um alfabeto com um número limitado de letras, podem-se produzir bilhões de textos, e é exatamente isso o que tem sido feito desde Homero até hoje.

Em contraste, um texto-estímulo que nos oferece, não letras ou palavras, mas sequências predeterminadas de palavras ou de páginas, não nos dá a liberdade de inventar nenhuma coisa que desejarmos. Somos livres apenas para deslocar blocos textuais, em um número muito elevado de maneiras. Um móbile de Calder é fascinante não porque produz um número infinito de movimentos possíveis, mas porque nele admiramos a regra férrea imposta pelo artista, uma vez que o móbile só se movimenta das maneiras que Calder desejava.

Chapeuzinho come o lobo

Na última fronteira da textualidade livre, pode haver um texto que começa como um texto fechado, digamos, "Chapeuzinho Vermelho" ou "As Mil e uma Noites", e que eu, o leitor, posso alterar conforme minhas inclinações, elaborando dessa forma um segundo texto, que já não será mais o original e cujo autor sou eu mesmo, embora a afirmação da minha autoria seja uma arma contra o conceito de uma autoria definida. A internet está aberta a tais experiências, e a maioria delas pode ser bela e compensadora. Nada nos proíbe de escrever uma história em que Chapeuzinho Vermelho devora o lobo. Nada nos proíbe de unir duas histórias diferentes numa espécie de colcha de retalhos narrativa. Mas isso nada tem a ver com a verdadeira função e com o encanto profundo dos livros.

Um livro nos oferece um texto que, ao mesmo tempo em que está aberto a múltiplas interpretações, nos diz algo que não pode ser modificado. Suponhamos que estejamos lendo "Guerra e Paz", de Tolstói: desejamos ardentemente que Natacha não aceite a corte do detestável canalha Anatóli; desejamos ardentemente que essa pessoa maravilhosa que é o príncipe Andriei não morra e que ele e Natacha vivam juntos para sempre.

Se tivéssemos "Guerra e Paz" num CD-ROM interativo e hipertextual, poderíamos reescrever nossa própria história segundo o nosso desejo; poderíamos inventar inumeráveis "Guerras e Pazes", em que Pierre Besuchov consegue matar Napoleão ou, conforme as tendências da pessoa, Napoleão consegue uma vitória completa contra o general Kutuzóv. Que liberdade, que emocionante! Quaisquer Bouvard ou Pécuchet poderiam se tornar um Flaubert!

Infelizmente, com um livro já escrito, cujo destino está determinado por uma decisão autoral e repressiva, não podemos fazê-lo. Somos obrigados a aceitar o destino e compreender que somos incapazes de alterar a fortuna. Um romance hipertextual e interativo nos permite praticar a liberdade e a criatividade, e espero que essa atividade inventiva venha a ser implementada nas escolas do futuro.

Mas o romance "Guerra e Paz", já escrito em caráter definitivo, não nos põe frente a frente com as possibilidades infinitas da nossa imaginação, mas sim com as leis severas que governam a vida e a morte.

De modo semelhante, em "Os Miseráveis" Victor Hugo nos oferece uma descrição maravilhosa da batalha de Waterloo. A Waterloo de Hugo é o oposto da de Stendhal. Em "A Cartuxa de Parma", Stendhal vê a batalha pelos olhos do seu herói, que observa de dentro do evento e não compreende sua complexidade. Hugo, ao contrário, descreve a batalha do ponto de vista de Deus e a acompanha em todos os detalhes, dominando todo o cenário com a sua perspectiva narrativa.

Hugo não só sabe o que aconteceu como também o que poderia ter acontecido e de fato não aconteceu. Sabe que, se Napoleão estivesse ciente de que, além do monte Saint Jean, havia um penhasco, os couraceiros do general Milhaud não teriam sucumbido aos pés do Exército inglês, mas suas informações na ocasião eram vagas e falhas. Hugo sabe que, se o pastor que guiou o general Von Bulow tivesse sugerido um caminho diferente, o Exército prussiano não teria chegado a tempo de causar a derrota dos franceses.

Para salvar Napoleão

De fato, num jogo de RPG, uma pessoa poderia reescrever Waterloo de sorte que Grouchy chegasse com seus soldados para salvar Napoleão. Mas a beleza trágica da Waterloo de Hugo reside em que os leitores sentem que as coisas se passam de forma independente de seus desejos. O encanto da literatura trágica reside em que sentimos que seus heróis poderiam ter escapado de seu destino, mas não o conseguem em razão de sua fraqueza, de seu orgulho, de sua cegueira. Além disso, Hugo nos diz: "Tamanha vertigem, tamanho engano, tamanha ruina, tamanha queda, que assombrou a história inteira, será algo sem uma causa? Não... O desaparecimento desse grande homem foi necessário para a vinda do novo século. Alguém, a quem ninguém pode fazer objeções, cuidou do evento ... Deus omitiu-se, Dieu a passé".

Isso é o que todo grande livro nos diz, que Deus se omitiu, e Ele se omitiu para o crente e para o cético. Há livros que não podemos reescrever porque sua função é nos instruir acerca da necessidade e, só quando respeitados tal como são, podem eles nos fornecer tal sabedoria. Sua lição repressiva é indispensável para alcançarmos uma condição mais elevada de liberdade intelectual e moral.

Espero e desejo que a Bibliotheca Alexandrina continue a guardar esse tipo de livro, para oferecer a novos leitores a experiência insubstituível de lê-los. Vida longa a este templo da memória vegetal.

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Umberto Eco é romancista e e semiólogo italiano, autor de, entre outros livros, "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos pela editora Record. O texto acima foi publicado originalmente no jornal egípcio "Al-Ahram".

Tradução de Rubens Figueiredo.


Fonte: OFAJ 

Ler e escrever na cultura digital

Andrea Cecilia Ramal
Pesquisadora do Centro Pedagógico Pedro Arrupe
Autora de Histórias de gente que ensina e aprende
Doutora em Educação - PUC-RJ

"Vivemos um desses raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado." (Pierre Lévy, 1993, p.17)

Nas culturas que não conheciam a escrita, a transmissão da história se dava através das narrativas orais: o narrador relatava as experiências passadas a ouvintes que participavam do mesmo contexto comunicacional. Era uma espécie de história encarnada nas pessoas: quando os mais velhos morriam, apagavam-se dados irrecuperáveis pelo grupo social. O saber e a inteligência praticamente se identificavam com a memória, em especial a auditiva; o mito funcionava como estratégia para garantir a preservação de crenças e valores. O tempo era concebido como um movimento cíclico, num horizonte de eterno retorno.

A escrita inaugurou uma segunda etapa na história humana. Com ela, mudaram as relações entre o indivíduo e a memória social. O sujeito pôde projetar sua visão de mundo, sua cultura, seus sentimentos e vivências, no papel. Ao fazer isso, pôde analisar o próprio conhecimento das coisas e do mundo, e fazê-lo chegar até os homens de outras culturas e outros tempos. O saber que era condicionado pela subjetividade se tornou objetivo e possível de se distanciar; a experiência pôde ser compartilhada sem que autor e leitor necessariamente participassem do mesmo contexto.

A escrita relativiza o papel da memória: é como se fosse um auxiliar cognitivo situado fora do sujeito. Ela torna presente e atemporal a palavra dos líderes, suas realizações, suas leis. Assim ajuda a tecer, linha após linha, as páginas da História.

Em vez do horizonte de eterno retorno das narrativas orais, a escrita traz o sentido de linearidade. A memória de uma cultura já não cabe apenas no conto: ela é constituída de documentos, vestígios, registros históricos, datas e arquivos. Tudo passa a estar inscrito numa cronologia. À lógica da justaposição, própria da oralidade, contrapõe-se a lógica do encadeamento. À autoridade do autor sem a obra material (narrador) contrapõe-se a autoridade da obra sem necessidade da presença do autor: o texto fala por si mesmo. O distanciamento possibilitado pela grafia permite o registro das experiências e das hipóteses, o conhecimento especulativo, o documentário de comprovações, a compilação de teorias e paradigmas.

A possibilidade de tratamento objetivo dos fatos e das experiências advinda da escrita traz, por outro lado, a desconfiança quanto ao efetivo entendimento das mensagens. Esta dualidade se reflete numa pressão em direção à universalidade e à objetividade. Passamos da revelação à decifração, como se o mundo fosse um livro a ser lido e interpretado. O saber está distanciado, disponível e maleável para a leitura, o estudo e a avaliação de outros sujeitos. É uma espécie de memória impessoal que traz com ela uma preocupação certamente não muito nova, mas que vai ganhar ênfase no imaginário dos especialistas: a de conseguir produzir, registrar ou estabelecer verdades que sejam definitivamente independentes dos sujeitos que as produziram e dos contextos em que foram geradas - portanto, permanentes, absolutas e universais. A ambição teórica será a construção de enunciados que falem por si mesmos, sem a necessidade de mediadores ou intérpretes. A escrita dá impulso às estruturas normativas e desempenha um papel fundamental na constituição do discurso científico.

A escola se entende a partir das categorias próprias da cultura escrita: sua organização se faz sobre o conhecimento objetivo dos fatos, seu currículo se estrutura em função de saberes que pretendem funcionar como verdades permanentes, absolutas e universais, independentemente do contexto. Também assim se dá a relação com os textos, que falam por si mesmos: cabe ao aluno-leitor descobrir "o que o autor quis dizer", evitando a recriação, entendida como desvio do sentido original e "puro". Nesse ponto, a escola é herdeira da tradição positivista e do estruturalismo de Saussure, que separa a língua (fenômeno social) da fala (expressão individual de cada sujeito, circunstancial e contextualizada). Seguindo a tendência da busca e da valorização da objetividade e da neutralidade, contra a diversidade de interpretações, a escola estuda a língua como fenômeno estático, direcionando o ensino para a sistematização das normas, para a adequação ao sistema, sem abrir espaço para a diversidade, para a multiplicidade de interpretação dos signos, para as intenções dos falantes. Daí o predomínio das linguagens matemáticas ou "exatas", que não se prestam à polissemia; pois, como aconselhava Francis Bacon, é mais seguro

"...imitar a sabedoria dos matemáticos, estabelecendo desde o início as definições de nossas palavras e termos, para que outros possam saber como os aceitamos e entendemos, e decidir se concordam ou não conosco" (apud Hacking, 1999).

Nessa escola, ler equivale a compreender o que foi expressado, como buscando acesso a uma lei universal. O texto é retirado de sua função social viva, seu contexto, suas raízes e sua história. Ele existe objetivamente, externo ao leitor e, portanto, é a ele estranho. O aluno não tem controle sobre ele - ao contrário, é o texto que, de certa forma, exerce o controle, uma vez que o estudante, sem possuí-lo, nada vale. O texto surge, assim, como fator de alienação escolar.

O conhecimento escolar da cultura letrada se estruturou como as páginas de um livro: linear, encadeado e segmentado. Num livro é difícil, mesmo incômodo, consultar dois trechos de páginas diferentes ao mesmo tempo: na escola também. É preciso passar primeiro pelo pré-requisito, e só depois ver o seguinte.

Apesar de tê-lo objetivado no papel, a escola não prescindiu do conhecimento memorizado, como se não confiasse no novo auxiliar cognitivo. Com uma diferença, porém: para os narradores, a história relatada fazia sentido porque era parte de suas vidas; na escola, isso quase nunca ocorreu: justamente se memoriza o que não faz sentido, o que não tem relação com a realidade, o que só serve para depois.

A cultura escrita raramente chega sem violência, inclusive porque, devido ao prestígio que os sistemas alfabetizados adquiriram, acaba se designando a cultura oral como inferior. T. Astle escreveu em 1874 que "a mais nobre aquisição da humanidade é a fala, e a arte mais sutil é a escrita; a primeira distingue eminentemente o homem da criatura bruta, e a segunda, dos selvagens sem civilização" (apud Olson, 1997). Visões similares ainda existem hoje, embora menos explícitas, por exemplo, em alguns povos da África, nos quais vêm sendo estabelecidos alfabetos para representar línguas orais, trazendo aos aprendizes não apenas uma técnica de escrita, mas também "todos os diferentes conteúdos e conceitos que uma cultura letrada elabora com a própria força da escrita, e que neste caso é, além do mais, uma cultura estrangeira" (Lopes, 1998). Em Moçambique, as populações migrantes do campo, deslocadas e dispersas da sua cultura de origem, são compelidas a se alfabetizar no idioma dominante, sendo inevitável o abandono da língua materna e, por consequência, o abandono da forma peculiar que cada cultura tem de ver o mundo e de conceber a experiência vivida. Segundo Lopes (1998), "a política linguistica moçambicana está ainda no pós-independência a ser utilizada como instrumento de dominação, de fragmentação e de assimilação".


Mas não é preciso ir tão longe: no Brasil conhecemos uma realidade análoga, quando na educação das crianças são impostas as normas da língua "culta", desprezando os saberes que elas trazem do próprio meio cultural - fenômeno que tem repercussões mais graves nos alunos provenientes do interior, ou de classes sociais injustiçadas. Estas crianças ingressam num mundo todo feito contra elas, ao qual, naturalmente, têm dificuldades para se adaptar.


A escola costuma limitar a possibilidade de penetrar na experiência do outro; com seus currículos rígidos, fundamentados sobre uma concepção racionalista e linear, a educação escolar muitas vezes se constitui como dominação da razão sobre outras competências e saberes humanos, mais ligados ao espírito, à afetividade, ao emocional. A relação com textos não se dá tanto pela narrativa e pela criação como pela interpretação e análise morfológica, abrindo-se mão da memória e da experiência pessoal, em nome da centralidade do intelecto, imposta pela busca prioritária de uma compreensão teórica do real e da linguagem.


A escola como a conhecemos até agora, enfim, tem muito mais de monologismo do que de polifonia - estou me apropriando de conceitos do linguista russo Mikhail Bakhtin. Uma escola monológica é aquela em que um único sentido sobressai, impedindo os demais de virem à tona. Esse tipo de trabalho com a linguagem exclui a dimensão criadora; a língua passa a servir, numa análise mais ampla, até mesmo como um instrumento de reprodução do sistema. Em lugar disso, na perspectiva da polifonia


"Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não existem fronteiras para um contexto dialógico. (...) Em qualquer momento do diálogo existem as massas enormes e ilimitadas de sentidos esquecidos que serão recordados e reviverão em um contexto e num aspecto novo"(Bakhtin, 1985).


A polifonia, para Bakhtin, é um jogo dramático de vozes "que torna multidimensional a representação e que, sem buscar uma síntese de conjunto, cria uma tensão dialética que configura a arquitetura própria de todo o discurso" (apud Silva e Cid, 1998).


Anular a possibilidade da polifonia é anular o diálogo e a reconstrução possível de sentidos, fechando o acesso ao que só poderia ser completado pelo leitor. Clarice Lispector (1980) escreveu: "ao prender o que me aconteceu usando palavras estarei destruindo um pouco o que senti - mas é fatal". Talvez não seja: quem lê reconstroi.


A cibercultura


A conexão simultânea dos atores da comunicação a uma mesma rede traz uma relação totalmente nova com os conceitos de contexto, espaço e temporalidade. Do horizonte do eterno retorno das narrativas, e da linearidade das culturas letradas, passamos a uma percepção do tempo, mais do que como linhas, como pontos ou segmentos da imensa rede pela qual nos movimentamos. Vivemos num ritmo de velocidade pura; como afirma Lévy (1993), não há horizonte, nem ponto-limite, um "fim" no término da linha. Ao contrário, vivemos uma fragmentação do tempo, numa série de presentes ininterruptos, que não se sobrepõem uns aos outros, como páginas de um livro, mas existem simultaneamente, em tempo real, com intensidades múltiplas que variam de acordo com o momento. Enquanto na era da escrita o mote é "construir o futuro", hoje vale o que ocorre neste preciso momento.


O megadesign hipertextual reconfigura todo o espaço. Trata-se de um ciberespaço, interativo e receptivo a todas as vozes conectadas que desejem escrever uma parte do megatexto produzido pela inteligência coletiva.


O hipertexto, nova forma de escrita e de comunicação da sociedade informático-mediática, é também uma espécie de metáfora que vale para as outras dimensões da realidade. Interessa-me estudá-lo nessa perspectiva, e aí está uma de suas conexões com o campo educacional. A internalização da estrutura do hipertexto como mediação para a produção de conhecimento implica novas formas de ler, escrever, pensar e aprender. Como afirmam Landow e Delany (1991), a hipertextualidade não é um mero produto da tecnologia, e sim um modelo relacionado com as formas de produzir e de organizar o conhecimento, substituindo sistemas conceituais fundados nas ideias de margem, hierarquia, linearidade, por outros de multilinearidade, nós, links e redes.


O que é um hipertexto(1)? Como o próprio nome diz, é algo que está numa posição superior à do texto, que vai além do texto. Dentro do hipertexto existem vários links, que permitem tecer o caminho para outras janelas, conectando algumas expressões com novos textos, fazendo com que estes se distanciem da linearidade da página e se pareçam mais com uma rede. Na Internet, cada site é um hipertexto - clicando em certas palavras vamos para novos trechos, e vamos construindo, nós mesmos, uma espécie de texto. Na definição de Jay Bolter (1991): "as partes de um hipertexto podem ser agrupadas e reagrupadas pelo leitor".


Cada uma das páginas da rede é construída por vários autores: designers, projetistas gráficos, programadores, autores do conteúdo do texto. Cada percurso textual é tecido de maneira original e única pelo leitor cibernético. Não existe, portanto, um único autor: seria mais adequado falar de um sujeito coletivo, uma reunião e interação de consciências que produzem conhecimento e navegam juntas.


O hipertexto como subversão da escola linear



O hipertexto, reunião de vozes e olhares, é subversivo em relação ao monologismo. Construído na soma de muitas mãos, e aberto para todos os links e sentidos possíveis, o hipertexto contemporâneo é, de certo modo, uma versão da polifonia que Bakhtin buscava; e, portanto, uma possibilidade para o diálogo entre as diferentes vozes, para a negociação dos sentidos, para a construção coletiva do pensamento.


O hipertexto é subversivo na relação entre autor e leitor. O cursor do mouse está permanentemente presente no texto do monitor, como um sinal concreto de que, no momento em que desejarmos, poderemos invadi-lo, reescrever seus caminhos, optar por outras vias. Subverte-se, por inerência, a noção de autoria.


O hipertexto é subversivo com relação à linearidade. A linearidade, que teve data de nascimento - o aparecimento da escrita - e papel determinante no pensamento ocidental, tem agora, nesta nova interface, o momento de seu declínio, agora que ler é mergulhar nas malhas da rede, é perder-se, é libertar-se dos caminhos proibidos, que o monologismo havia colocado em segundo plano. Sem margens, sem início, nem fim, sem percurso estabelecido por antecipação, cada texto termina com a abertura para outras mensagens. O fim é o próprio link. Se a marca do início determina a forma de construção da narrativa, poderíamos dizer que, sem um princípio único, várias narrativas seriam possíveis - todas aquelas construídas pelo leitor, como protagonista de uma construção em que o ouvinte trabalha os fios e tece a narração seguinte.


Um hipertexto é subversivo com relação à forma. Ele amplia os recursos expressivos do texto escrito na possibilidade de articular imagens, palavras e sons. E, se não podemos dizer que amplie os recursos da oralidade, pelo menos verificamos que modifica as suas condições, na medida em que acrescenta à fala e à narração a possibilidade de vínculo com a palavra escrita e as ilustrações. Ocorre ainda a subversão na hierarquia interna do texto: imagens falam, muitas vezes, mais do que palavras. A ilustração conquista o espaço da mensagem. Imagem e som ganham o status de "linguagem" e, portanto, invadem o espaço do significante escrito para tornar-se, também elas, novos textos, concebidos com diferentes modelos e igualmente relevantes para a comunicação social. A imagem disponibilizada na Internet e acessada pelo aluno passa a ser também mediadora para o conhecimento do mundo(2).


O hipertexto é subversivo até com relação à postura física do leitor. Do livro de rolo, que não permitia ler, comparar e fazer anotações ao mesmo tempo, já que o leitor devia segurá-lo com ambas as mãos para poder correr o texto, ao livro encadernado, que permite virar as páginas, mas sempre em sequência, uma após outra (e nunca uma e outra), passamos a um texto totalmente maleável. Poderá não ter, e isso é certo, os encantos do papel ou do pergaminho; mas nos permite a visibilidade das janelas, a abertura das múltiplas caixas de texto, os recursos de cortar e colar fragmentos, a infinidade de dobras caleidoscópicas.


Essa maleabilidade traz a reflexão sobre o digital - trata-se de outro tipo de materialidade. Muda a relação com o objeto: o texto não é mais algo palpável, mas feito de bites, e ocupam um espaço difícil de definir ou imaginar. Essas informações digitais são provisórias e plásticas. Obedecem a um ritmo específico de pertinência imediata e de obsolescência acelerada. A informatização instaura, como prevê Pierre Lévy, um novo regime de circulação e de metamorfose das representações e dos conhecimentos.


O que muda na alfabetização, no letramento, nos processos educacionais de internalização das formas comunicacionais nesta cultura digital? Parece-me que as rupturas são tão radicais que exigirão um repensar de alguns dos elementos básicos da escola. Citarei apenas alguns deles.


Em primeiro lugar, deveremos rever nossos referenciais teóricos. Piaget, Vygotsky, Ferreiro iluminaram a reconstrução dos métodos e processos de alfabetização na escola visando garantir ao aluno um papel mais ativo. Graças a eles e outros tantos, pudemos saber um pouco mais sobre como o aluno pensa e como constrói o conhecimento. Hoje, mudando as formas de construção do saber, teremos que voltar a pensar esses pressupostos. Podemos ainda considerar os mesmos estágios mentais do construtivismo com crianças que têm acesso ao computador antes de se alfabetizarem? Se Vygotsky nos fez perceber o caráter dialético de construção da mente, na interação com o meio através da linguagem, de que forma sua obra deve ser relida hoje, quando os signos se multiplicam e um novo mundo, virtual, reproduz as tensões e os conflitos linguísticos do mundo real? Partindo do princípio de que cada método pedagógico revela uma concepção do ser humano e uma compreensão sobre o modo como se aprende, parece-me que são necessárias novas pesquisas para verificar quem é o sujeito da educação hoje. Para começar, já sabemos que é alguém que interage com uma máquina, um dispositivo mediador a partir do qual (re)conhece o mundo.


Além disso, deveremos rever nossos currículos. A linearidade dará lugar ao hipertextual, ao móvel e flexível. A escola estruturalista dos saberes prontos, definidos, acabados e descontextualizados será desestabilizada pelo descentramento, pela contínua produção e negociação de sentidos e de novos discursos, pelas construções abertas e as paisagens inusitadas. Os conteúdos deixarão de se percorrer como páginas de um livro, para se tornarem janelas de um hipertexto, em múltiplas dimensões que se interconectam e interpenetram. As janelas abertas deixarão entrar luzes imprevistas.


Um terceiro ponto: as relações de poder que surgem na escola a partir dos instrumentos tecnológicos são totalmente novas. Pela primeira vez na história, a tecnologia da dominação é mais conhecida pelo "dominado". Em outros termos: até hoje o professor trazia o saber, a norma culta, a escrita "correta", para os nãoletrados, reproduzindo no contexto escolar (por mais que houvesse cuidado e respeito pelo aluno) as situações de imposição linguística vividas pelas culturas orais. Hoje, ocorre um paradoxo: aquele a ser educado é o que melhor domina os instrumentos simbólicos do poder, o aparato de maior prestígio: as tecnologias. O que ocorrerá na sala de aula? Parece-me que as parcerias e a aprendizagem em conjunto serão inevitáveis.


O quarto ponto é a necessidade de reinventarmos a nossa profissão. Usando a linguagem dos PCNs, vejo o papel do professor decisivo nos três eixos de conteúdos curriculares: nos conteúdos conceituais, como arquiteto cognitivo, responsável por traçar as estratégias e definir os métodos mais adequados para que o aluno chegue a uma construção ativa do conhecimento; nos conteúdos procedimentais, como dinamizador de grupos, ao ajudar os estudantes a descobrirem as formas pelas quais se chega ao saber, os processos mais eficazes e o diálogo possível entre as disciplinas, gerenciando uma sala de aula na qual os estudantes, com suas diversas competências, dialogam com respeito entre si e estabelecem parcerias produtivas; e nos conteúdos atitudinais, como educador, comprometendo-se com o desafio de estimular a consciência crítica para que todos os recursos desse novo mundo sejam utilizados a serviço da construção uma humanidade também nova, com base nos critérios de justiça social e respeito à dignidade humana (Ramal, 2000).


Finalmente, creio que devemos pensar o que significa construir uma pedagogia intercultural. O prefixo inter indica ênfase nas trocas, nas conexões, no diálogo. Lopes (1998) distingue o intercultural do multicultural que, para ele, é um termo estático, "que pode, na realidade cotidiana, traduzir-se pela simples justaposição de culturas múltiplas no interior duma sociedade, sem comunicação entre elas, cada uma permanecendo fechada o mais que lhe for possível". O intercultural, ao contrário, é movimento e reciprocidade. Construir uma pedagogia intercultural será tornar possível, no currículo, a abertura ao outro, reconhecendo que a experiência do outro é fundamental para a constituição da subjetividade e para a produção de saber coletivo. A pedagogia intercultural é, em termos bakhtinianos, a resposta polifônica ao monologismo.


Acredito na possibilidade de que o hipertexto contemporâneo - construído na soma de muitas mãos, e aberto para todos os links e sentidos possíveis - seja uma versão dessa polifonia que Bakhtin procurava; e na escola, uma possibilidade para construir uma sala de aula aberta à pluralidade de vozes, à construção coletiva, à partilha das interpretações, à democracia da palavra. Para isso, será necessário reentender a palavra, a escrita e o texto como unidades discursivas que só encontram sua completude no processo dialógico, e reconstruir o processo educativo como um acontecimento de interação de consciências. A escola da cibercultura pode tornar-se o espaço de todas as vozes, todas as falas e todos os textos. O desafio mais instigante é o do professor, que pode finalmente reinventar-se como alguém que vem dialogar e criar as condições necessárias para que todas as vozes sejam ouvidas e cresçam juntas.



NOTAS


(1) Uma pesquisa sobre a história do hipertexto pode ser realizada no Virtual Museum of Computing. (http://www.nma.gov.au/vlmp/computing.html). (voltar ao texto)


(2) Desenvolvi estas idéias em outro artigo: RAMAL (1997). (voltar ao texto)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



- BAKHTIN, Mikhail. Estética de la creación verbal. Madrid: Siglo Veintiuno, 1985, 2a.


- BOLTER, David Jay. Writing Space: The Computer, Hypertext, and the History of Writing. New Jersey: Lawrence Earlbaum, 1991.


- HACKING, Ian. Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: UNESP/Cambridge University Press, 1999.


- LANDOW, G. P. and DELANY, P. "Hypertext, Hypermedia and Literary


- Studies: the State of the Art", in DELANY, P. and LAKOFF, G. (orgs.) Hypermedia and Literary Studies, Cambridge: The MIT Press, 1991.


- LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.


- LOPES, José S. M. Cultura Acústica e Letramento em Moçambique: Em busca de fundamentos para uma educação intercultural. Caxambu: 21ª ANPEd, 1998.


- OLSON, David R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997.


- RAMAL, Andrea Cecilia. "Formar professores na cibercultura" in Revista da AEC, junho de 2000, no prelo.


- ____________________. "O templo da palavra invadido pelo mundo da imagem e da navegação" in Revista Guia da Internet.br. Rio de Janeiro: Ediouro, número 8, 1997.


- SILVA, Armindiara Braga Longo da "e" CID, Lúcia Therezinha Ribeiro de Araujo. "Projeto de Pesquisa: O projeto de leitura na sala de aula". Revista Inovação em Processo, no. 13. Rio de Janeiro: Centro Pedagógico Pedro Arrupe, 1998.

 

Fonte: Revista Conecta